E se Xerazade contasse histórias do Portugal da troika para evitar que o seu marido, o rei Shahriar, lhe cortasse a cabeça? Esta é a ligação entre o clássico “As Mil e Uma Noites” e o filme com o mesmo nome de Miguel Gomes, obra dividida em três volumes com mais de seis horas.
Tal como no clássico, também nesta película um rei enganado pela mulher decide desposar uma nova donzela todos os dias e mandá-la matar ao despontar da aurora – até que chega Xerazade, que com a cumplicidade da irmã inventa histórias para contar ao marido que todas as noites ficam por acabar, numa espécie de cliffhanger, adiando a morte por mais um dia.
Se no livro Xerazade conta histórias de príncipes e princesas, mercadores e aventureiros, Miguel Gomes troca-os a todos por portugueses reais. Durante um ano, uma equipa de jornalistas recolheu histórias do quotidiano da crise e relatou-as no site do filme. E foi sobre estes relatos verídicos que o realizador trabalhou para ficcionar as histórias de Xerazade.
O resultado tem tanto de surpreendente como de excepcional. Ao longo de 125 minutos, desenha-se no ecrã um retrato realista – quase a tocar o documentário – do Portugal contemporâneo, dos portugueses engolidos pela austeridade e do engenho que tiveram para procurar e encontrar o caminho de sobrevivência possível durante a estadia da troika no país.
O filme acaba por ser quase uma epopeia do colectivo, com pobres e ricos, insignificantes e poderosos, ladrões e honestos, com alguns pés assentes na terra e outros no ar, acompanhados de traços de delírio e de excessos. No fundo, o país real.
“As Mil e Uma Noites”
5 estrelas
De Miguel Gomes
Com Miguel Gomes, Carloto Cotta, Adriano Luz, Rogério Samora, Maria Rueff