Victoria Guerra. “Tenho este ar de princesinha de olho azul, percebo que me dêem papéis de certinha”

Victoria Guerra. “Tenho este ar de princesinha de olho azul, percebo que me dêem papéis de certinha”


“Cosmos”, de Andrzej Zulawski, venceu o prémio de Melhor Realizador em Locarno. Falámos com a actriz num momento alto da sua carreira.


Victoria, isso mesmo. Com c e sem acento, resultante de ser filha de mãe inglesa e pai português. Factor que nem por isso resultou numa educação fora do normal. O mesmo já não podemos dizer da aparência, que, como o título indica, se pode tornar um estigma. Imagem que há algum tempo se começou a dissipar. Aos 26 anos, Victoria Guerra é uma das protagonistas de “Cosmos”, filme produzido por Paulo Branco e realizado pelo polaco Andrzej Zulawski – que, para os mais distraídos, é um dos grandes nomes do cinema independente a nível mundial – que venceu, no festival de cinema de Locarno, o prémio para Melhor Realizador. Oque é igual a dizer que a actriz se senta na mesma mesa que os melhores – e que pode tornar-se mais evidente se conseguir obter o visto de trabalho para poder participar no próximo filme de John Malkovich, em Hollywood. Suposições à parte, eis uma simples conversa com uma das actrizes mais bem-sucedidas do momento. 

Como surgiu o convite para “Cosmos”?
O Paulo [Branco, produtor] ligou-me e disse: “Vou fazer um filme com o Andrzej Zulawski e há lá uma personagem que podes fazer, por favor lê o livro.” Uns meses depois reuni-me com o Zulawski, falámos sobre a personagem, fizemos uma primeira leitura com todos os actores e foi isto. É claro que oPaulo teve alguma influência, tal como o John Malkovich, que, num jantar, disse ao Zulawski para confiar em mim.

Como foi trabalhar com um cineasta desta dimensão, que já não filmava há 15 anos?
Foi a melhor experiência da minha vida. Vendo as suas obras, as pessoas percebem o universo que o Zulawski propõe, mas trabalhar com ele é totalmente diferente. É um trabalho muito… especial.

Consegue materializar isso?
Não, não consigo. É muito difícil, é uma construção e desconstrução constante. Ele gosta de conhecer as pessoas, de perceber quem somos, de onde vimos, como pensamos. Não posso dizer que ele trabalha de uma forma específica, todos os dias é diferente, há uma “psicanálise” contínua da parte dele que funciona muito bem.

“Não posso dizer que ele [Zulawski] trabalha de uma forma específica, todos os dias é diferente, há uma ‘psicanálise’ contínua”

 

Sente que no fim do filme ele já confiava em si, como Malkovich propôs?
Não, confia num dia, no outro já não. Ele acabou o filme a dizer “não te conheço”.

Isso é perturbador?
Claro que é. Aliás, perturbador é a melhor palavra para explicar a sua forma de trabalhar, isso leva-nos além do nosso limite, o que é incrível.

Sabe-se pouco sobre o filme. A sua personagem, pelo que percebi, é casada e mora com os pais, mais tradicional era impossível. Como é que se prepara algo deste género?
O mais importante era saber o texto de cor e salteado, tendo em conta que é um texto bastante literário, cheio de referências. Durante as rodagens, juntávamo-nos todas as noites e líamos o texto do dia seguinte. Chegados às rodagens, era viver o que havia, ou não, para viver.

O que pode dizer sobre a personagem?
Se não viste o filme, não é fácil explicar, é quase um ovni, um universo obsessivo.

A Lena tenta, como toda a gente no dia-a–dia, ser normal, casar, ter filhos, aquela coisa que nos dizem…
Só que a Lena não é normal, certo?

Exacto, como nenhuma personagem no filme é normal. Aos poucos vai-se percebendo essa anormalidade que, dentro da vida, faz com esta seja mais normal.

A sua educação contribuiu para criar esta Lena?
É engraçado perguntares isso. Venho de uma família normal, pais casados, quatro filhos, felizes para sempre. Desde nova que nunca quis casar, nunca foi um sonho. Sempre quis o contrário, vingar na minha área profissional, muito mais do que criar família, que é algo que a sociedade nos impõe. Nunca sofri qualquer pressão dos meus pais, e eles sabiam que não iam ter uma filha normal, nesse sentido. De certa forma, sim, a minha educação foi importante, sobretudo pelo trabalho que o Andrzej [Zulawski] faz com os actores, a relação extralaboral. Mas a sério, é mesmo difícil falar sobre este filme com quem não o viu.

Presumo que a Victoria já o tenha visto algumas…
Duas vezes.

Vamos esclarecer de uma vez por todas: o que sente um actor quando se vê no ecrã?
É horrível. Há muita gente que não vê, ponto final. Gosto de ver para perceber o que fiz, sou muito crítica, tentar não repetir os truques que utilizo muito. Em geral não é fácil, não.

“Cosmos” sugere uma série de eventos estranhos, enforcamentos de animais e afins. É pessoa de ligar a estes fenómenos misteriosos no dia-a-dia?
É curioso, durante o filme aconteceram alguns fenómenos desses. Por exemplo, rodámos em Sintra, no Inverno: chovia num dia, no outro estava sol, algo que a nível de racord é uma coisa completamente louca. E tu vês o filme e faz todo o sentido, a chuva parece que é uma personagem, que também é uma obsessão. No dia-a-dia ligo alguma coisa a esses fenómenos, mas não ao ponto deste filme.

E relativamente ao estilo de vida, o enredo decorre numa casa de campo. A Victoria via-se a viver fora da cidade?
Sou dependente da cidade. Não me vejo a viver no campo, até porque venho do Algarve. Ou seja, não é campo, sou de Loulé, uma cidade grande da qual gosto muito. Mas quem me tira Lisboa tira-me tudo. Preciso do ritmo, da confusão.

Acalma-a, paradoxalmente?
Sim. Acho que o silêncio me assusta um bocado, o barulho dos animais… Começo a ficar maluca.

“Deixa-me feliz que um actor como Malkovich, que fez uma cena de 5 segundos comigo, 
tenha visto uma possibilidade de trabalharmos juntos” 

Este ano está a correr-lhe de feição. Pelo menos a avaliar pelas notícias que dizem que a Victoria vai gravar o novo filme do John Malkovich…
Se conseguir o visto… As pessoas dizem sempre isso, mas até o visto estar tratado não posso garantir nada. Não vou adiantar nada sobre o filme, não me compete a mim, tenho lá uma personagem, não é nada por aí além [muda o olhar, sorri e diz], quer dizer, para mim é por aí além, é muito bom. As pessoas ficam sempre interessadas por alguém que trabalha fora de Portugal, mas não é fácil conseguir um visto nos EUA, pelo que não tenho a certeza se vou chegar a fazê-lo.

Independentemente disso, como apareceu essa oportunidade?
Fiz o “Variações de Casanova” com o Malkovich e ele gostou de trabalhar comigo. A partir daí começou a enviar-me castings e os seus projectos… Tive uma grande sorte, diga-se. Enviei este casting, falei com o realizador e fiquei com o papel. É uma personagem meio louca, que quase nunca me dão em Portugal, mas, como já disse, preciso do visto para que tudo se confirme.

Faz ideia por que razão, em Portugal, não lhe dão papéis desse género?
Tenho este ar de princesinha de olho azul, percebo que me dêem papéis de certinha. Em cinema tenho feito coisas de época, que adoro, em televisão tenho feito, genericamente, personagens boazinhas. Não acho mal, tenho 26 anos, tenho muito pouco tempo de trabalho. Deixa-me feliz que um actor como John Malkovich, que teve uma cena de cinco segundos comigo, tenha visto, de repente, uma possibilidade de trabalhar comigo. Isso dá-me força.

Falou do cinema de época.Presumo que “As Linhas de Wellington” tenha sido essencial no seu trajecto.
Sim, e para ser sincera nem sabia bem o que estava ali a fazer. Foi um choque conseguir a personagem. O trabalho deu-me imenso gozo, mas confesso que estava em pânico. Havia milhares de figurantes, cavalos, é quase como uma criança na Disneylândia, é uma imagem um bocado estúpida, mas foi o que senti.

Como é que se lida com um crescimento de carreira tão abrupto? Lembro-me que há alguns anos a Victoria estava a fazer “Morangos com Açúcar”…
Se parar para pensar nisso, é a coisa mais assustadora do mundo. Não me posso esquecer de onde venho, sei que é uma frase feita e que parece a miss Portugal a dar uma entrevista, mas é um facto. Não sei onde vou estar daqui a ano…

Pelo andar da carruagem, vai estar longe…
Quem é que me diz isso? É esse tipo de pensamentos que tenho de ter presentes, é assim que quero continuar a trabalhar, continuo a ser a pessoa mais normal do mundo.

A televisão foi a sua muleta para o cinema. Chegada aqui, é aquilo que se vê a fazer no futuro?
Não sei, vou ser franca: gosto mesmo de cinema, gosto do processo, gosto que seja um projecto fechado. Não vou dizer o que vou ou não fazer, vou fazer o que me der prazer fazer.

O teatro é a área que menos explorou, não se sente preparada?
Não posso dizer que não estou preparada, sobretudo depois de trabalhar com o Zulawski. Aí sim, estive o tempo todo a dizer: “Não estou preparada para isto, não sei o que estou aqui a fazer.” Provavelmente, nunca estarei preparada, mas não posso perder o sono por isso.