Portalegre. Um Café Central de poetas e, quem sabe, de contrabando

Portalegre. Um Café Central de poetas e, quem sabe, de contrabando


Reabriu há ano e meio com uma nova gerência que tem gosto em servir bem. Mas ficam para a história os clientes ilustres da casa inaugurada em 1924: José Régio, com mesa cativa do lado esquerdo de quem entra, ou Mourão-Ferreira.


Mantém-se o chão de calçada, madeiras antigas e o nome na fachada. Mas já não há os mármores que antigamente ficavam riscados com o lançamento das peças de dominó, nem nada de elitismos. O primeiro alvará do Café Central de Portalegre data de 1924, mas as vidas do estabelecimento famoso por, nos anos 1950, ter sido palco de tertúlias organizadas por José Régio, são mais que muitas. A mais recente começou há ano e meio e trouxe à cidade uma casa de petiscos que gosta de caprichar na ementa e tem dado a provar aos portalegrenses modas como o limoncello ou o gin tinto.

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Domingas Escarameia, nascida e criada em Portalegre, é a anfitriã numa tarde de Verão e a mentora destas inovações. Aos 44 anos e com experiência em restauração, Domingas nunca tinha pensado lançar-se por conta própria, mas a crise acabou por servir de empurrão – porque quando não há nada, resta deitar mãos à obra e criar. O problema nem era tanto ela, mas os filhos, conta. Agarrar o espaço que estava prestes a ser mais uma das casas votadas ao esquecimento em Portalegre foi a forma de o filho, Diogo, e de a nora, Maria, na casa dos 20 anos, arranjarem sustento, e a mãe com experiência em hotelaria resolveu ajudar. Não os apanhámos, mas Domingas conta que o jovem casal também dá conta do recado. E os clientes ajudam, o que também é importante. Estão bem cotados no Tripadvisor, o que nos tempos que correm vale tanto como as estrelas Michelin. Pelo menos nas contas do dia–a-dia.

Remar contra a corrente

Sem emprego na região, não havia grande alternativa, diz Domingas, que não acredita nas estatísticas que dão conta de recuperação. “Só mesmo contando com toda a gente, até com quem anda em formação só umas horas por semana”, ironiza.

Quem está como ela num meio pequeno não vê ainda motivos para alegrias. “Só na Rua do Comércio há 40 casas fechadas”, diz Domingas. Mas mais do que a triste sina do país, a alentejana acredita que é preciso mudar o chip, o que nem sempre acontece. “Como é que havia de ser diferente? Temos aqui tudo: ALDI, Lidl, Minipreço, E.Leclerc, Pingo Doce. Não devia haver tanta coisa numa cidade mais pequena, mas temos de fazer diferente.”

Cientes de que também em restauração teriam concorrentes, abriram com o espírito de que não podiam ter mais do mesmo e foi daí que surgiu a decoração, que aproveita paletes, mas também a ideia de usar fardos de palha como mobiliário de esplanada nas tardes de Verão. Nos petiscos deram um twist ao típico, de que é exemplo o pão recheado com açorda de bacalhau ou de camarão. E servem só vinho alentejano, com destaque para a produção do Alto Alentejo, como o Rocha Rosa, da Herdade Tapada do Falcão, ou o Caiado, da Adega Mayor. Tudo em conta, como se quer. Nos jantares de grupo, o preço por pessoa anda pelos 10 euros. E não falta animação, com artistas locais, dança e fado.

O passado nas paredes

Porque parte do glamour de hoje passa por revisitar a história, esse lado também não foi esquecido. “Só tenho pena de não termos os mármores antigos”, diz Domingas. Herdaram o espaço como foi mantido pela proprietária do prédio, Adorinda, mas mesmo para Domingas, que se lembra do café desde miúda, a cave foi uma surpresa. “Entra-se por um alçapão na cozinha e tem o dobro do espaço”, diz. A história está por escrever, mas pensam que poderá ter sido local de contrabando, nada raro naquelas bandas, até de café.

Do passado legal, contudo, há mais referências. Nas paredes, fotografias antigas lembram a casa que chegou a ter

funcionários de casaca branca e laço para receber os senhores bancários, professores e juízes, mas também aquele que continua a ser o cliente mais ilustre da história do Central, o poeta José Régio (1901-1969). Sentava-se sempre numa mesa do lado esquerdo de quem entra e pensa-se que terá escrito ali a “Toada de Portalegre”, um elogio à terra. 
José Régio, famoso pelo seu “Cântico Negro” e os versos “Não sei para onde vou /Sei que não vou por aí!” era de Vila do Conde, mas dedicou ao liceu de Portalegre grande parte da vida.

Os mais velhos lembram-no melhor poeta que professor, mas isso são memórias já turvas – como as histórias de quando os oficiais milicianos destacados em Portalegre iam para o Central jogar bilhar a tostões nos tempos mortos, à espera de serem destacados, ou iam ali abastecer quando esgotavam as garrafas de whisky trazidas do Ultramar. O poeta David Mourão-Ferreira também esteve como miliciano em Portalegre e, depois de ter conhecido aquele que era um dos seus poetas de eleição em Lisboa, terá sido uma das companhias predilectas de José Régio no Central. Outro intelectual muitas vezes referenciado como habitué na casa, embora neste caso houvesse um amor-ódio com Régio, era Eugénio Lisboa, crítico do poeta.

Nestes anos 1940 e 1950, lembra um artigo publicado no jornal “A Rebeca”, eram poucos os que prolongavam muito a paragem no Central depois de se deliciarem com o café e alguns jogos. Havia outros atractivos, como ouvir a BBC, ir ao cinema ou ao teatro desmontável. Hoje também não faltam alternativas, mas Domingas diz que em termos de animação nocturna (e não só) em Portalegre, ninguém bate o Central.

Ficha do Café Central de Portalegre
Ano: 1924
Dono: Diogo Henriques e Maria Peralta
Especialidade: Pão recheado com açorda ou sopa de tomate com entremeada
Preço do café: 0,65€
Preço da cerveja: 1€