Teremos confiado demais em nós próprios?


“Viestes prender-me com espadas e varapaus, como se eu fosse um ladrão! Todos os dias estava sentado no Templo a ensinar, e não me prendestes” (Mt. 26-55)


É recorrente ouvir-se a afirmação de que “em Portugal não se investiga para prender, antes se prende para investigar”. Tal crítica vem de juristas de todos os quadrantes ideológicos. Da academia ecoam, apenas, as explicações da lógica subjacente aos mecanismos de detenção e às medidas de coacção. Demonstram o racional do mecanismo.

Porém, uma estatística actualizada e correctamente ponderada da percentagem dos presos sem culpa formada por relação com os condenados talvez dê razão aos que afirmam o excesso de prisões preventivas e domiciliárias, seja perante a população prisional, seja perante a população no seu todo.

Diz-se também, amiúde, que as autoridades usam e abusam das escutas telefónicas e de outros meios insidiosos de investigação. E quem o diz, também aqui, são juristas de vária proveniência formativa e múltiplas ideologias. E, realmente, não há procedimento penal “digno” em que não surjam umas escutazinhas para apimentar os factos… mesmo quando a evidência destes poderia facilmente decorrer de outros meios de prova, sem insídia.

Por fim, sempre que a questão é discutida, se recorda que a delação e a confissão continuam a ser pedras angulares da nossa Justiça criminal. Embora não seja já habitual encontrar detidos que teimem em esbarrar os olhos com maçanetas de portas, o certo é que ainda se encontram decisões judiciais com expressa censura aos Arguidos que nos autos não tenham optado por confessar os factos de que o Tribunal se convenceu. Como se não existisse direito ao silêncio. Como se houvesse dever de colaboração com a investigação ou dever de auto-incriminação. Como se a única postura aplaudível em juízo fosse a de confessar os factos que o Tribunal – com ou sem razão – entendeu ser verídicos… mesmo que o não tenham sido!

Ou seja: como se a única verdade fosse a do Acusador. E como se este, afinal, contra toda a dogmática fosse uma “parte”!

Este cenário, que tantos traçam, de um sistema judiciário que detém sem indício de que o visado se não apresentaria voluntariamente se chamado para tal (que por acaso até é um pressuposto da detenção); que se diz prender para investigar à vontade, faça tal ou não falta; que claramente aplaude a delação; e – pior que tudo – de Juízes que exigem a confissão, censurando e penalizando Arguidos que a não utilizam como estratégia de defesa, mesmo que entendam nada ter a confessar, é insustentável.

Mesmo para quem, por mais de 20 anos, vem sustentando a bondade do Código de Processo Penal, a sua correcção técnica geral, a sua boa inspiração e a intencionalidade imaculada dos seus autores originários, o que é demais é insuportável.

À força de esbarrar com a law in action, há que pensar em reformar a law in books. Não que não tenhamos um Código de primeiríssima água. A questão é outra: é a de saber se o Código foi feito para Portugal. Se a nossa cultura jurídica prática está ao nível dos instrumentos que o legislador lhe concedeu. Se não foi demasiada a responsabilidade que a dogmática largou sobre os ombros dos decisores, com o beneplácito do legislativo.

Em suma, se não teremos confiado demais em nós próprios!

Advogado

Escreve à sexta-feira

Teremos confiado demais em nós próprios?


"Viestes prender-me com espadas e varapaus, como se eu fosse um ladrão! Todos os dias estava sentado no Templo a ensinar, e não me prendestes" (Mt. 26-55)


É recorrente ouvir-se a afirmação de que “em Portugal não se investiga para prender, antes se prende para investigar”. Tal crítica vem de juristas de todos os quadrantes ideológicos. Da academia ecoam, apenas, as explicações da lógica subjacente aos mecanismos de detenção e às medidas de coacção. Demonstram o racional do mecanismo.

Porém, uma estatística actualizada e correctamente ponderada da percentagem dos presos sem culpa formada por relação com os condenados talvez dê razão aos que afirmam o excesso de prisões preventivas e domiciliárias, seja perante a população prisional, seja perante a população no seu todo.

Diz-se também, amiúde, que as autoridades usam e abusam das escutas telefónicas e de outros meios insidiosos de investigação. E quem o diz, também aqui, são juristas de vária proveniência formativa e múltiplas ideologias. E, realmente, não há procedimento penal “digno” em que não surjam umas escutazinhas para apimentar os factos… mesmo quando a evidência destes poderia facilmente decorrer de outros meios de prova, sem insídia.

Por fim, sempre que a questão é discutida, se recorda que a delação e a confissão continuam a ser pedras angulares da nossa Justiça criminal. Embora não seja já habitual encontrar detidos que teimem em esbarrar os olhos com maçanetas de portas, o certo é que ainda se encontram decisões judiciais com expressa censura aos Arguidos que nos autos não tenham optado por confessar os factos de que o Tribunal se convenceu. Como se não existisse direito ao silêncio. Como se houvesse dever de colaboração com a investigação ou dever de auto-incriminação. Como se a única postura aplaudível em juízo fosse a de confessar os factos que o Tribunal – com ou sem razão – entendeu ser verídicos… mesmo que o não tenham sido!

Ou seja: como se a única verdade fosse a do Acusador. E como se este, afinal, contra toda a dogmática fosse uma “parte”!

Este cenário, que tantos traçam, de um sistema judiciário que detém sem indício de que o visado se não apresentaria voluntariamente se chamado para tal (que por acaso até é um pressuposto da detenção); que se diz prender para investigar à vontade, faça tal ou não falta; que claramente aplaude a delação; e – pior que tudo – de Juízes que exigem a confissão, censurando e penalizando Arguidos que a não utilizam como estratégia de defesa, mesmo que entendam nada ter a confessar, é insustentável.

Mesmo para quem, por mais de 20 anos, vem sustentando a bondade do Código de Processo Penal, a sua correcção técnica geral, a sua boa inspiração e a intencionalidade imaculada dos seus autores originários, o que é demais é insuportável.

À força de esbarrar com a law in action, há que pensar em reformar a law in books. Não que não tenhamos um Código de primeiríssima água. A questão é outra: é a de saber se o Código foi feito para Portugal. Se a nossa cultura jurídica prática está ao nível dos instrumentos que o legislador lhe concedeu. Se não foi demasiada a responsabilidade que a dogmática largou sobre os ombros dos decisores, com o beneplácito do legislativo.

Em suma, se não teremos confiado demais em nós próprios!

Advogado

Escreve à sexta-feira