Vouzela. Neste Café Central troca-se a bola pelos bolos

Vouzela. Neste Café Central troca-se a bola pelos bolos


Decore estes nomes: caladinhos, folares, queijadas de requeijão, broas de frutos e raivas. 


Esqueça o típico Café Central, com muita cerveja e petiscos, recordes de taças de vinho vendidas em dia de festa ou casa cheia quando joga o Benfica. Em Vouzela, o Central não tem televisão, quase não vende cerveja e de salgados só serve tostas mistas e torradas. Mas não é por isso que deixa de ser um café digno de carregar um nome tão tradicional entre os estabelecimentos portugueses. Primeiro, é de facto central e dá início à principal rua da vila, e depois não é por não vender moelas ou pataniscas que perde tradição. Aliás, trocando o salgado pelo doce, garantimos que o que sai deste balcão é de dar graças aos antepassados que decidiram experimentar a mistura entre ovos e açúcar.

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O dia de Fátima Martins começou às 4 da manhã, hora a que se levanta para ir para o fabrico. Das suas mãos saíram 50 folares, 120 caladinhos, 60 queijadas e 48 delícias de amêndoa. Mais doce, menos doce, é esta a sua rotina desde que assumiu o negócio que está na família há 40 anos. Só os pastéis de Vouzela, que servem de cartão-de-visita à casa, é que não saem das mãos de Fátima. “Mas temos fornecedores exclusivos”, adianta, já com a placa na mão que dá conta de terem ganho o Concurso Nacional de Doçaria Conventual Portuguesa.
Sem deixar escapar nenhum segredo, a proprietária faz do açúcar, ovos, farinha e manteiga o quarteto fantástico que serve de base a quase toda a doçaria que enche a montra e se alarga até duas mesas ao lado. O olhar até se perde entre bolos de todas as formas e somos obrigados a apontar os nomes para não trocar identidades. É que, aparentemente, Fátima só apresentou parte da fornada. “Temos ainda as raivas, as queijadas de requeijão, as broas de frutos, os bolos de gema, o pão-de-ló, os suspiros.” Quando pensávamos que a lista tinha acabado, Fátima conclui: “E depois temos aqueles mais básicos, pastéis de nata e biscoitos de manteiga.” Entretanto, só de ouvir os nomes que acompanham a realidade escancarada na montra de vidro à nossa frente, os níveis de açúcar já quase pedem um teste de glicémia.

Fátima aprendeu tudo com a mãe, sempre que ela a deixava espreitar as panelas da cozinha. “Ela dizia-me muitas vezes, ‘aprende comigo que eu não duro sempre’.” Absorveu a arte dos outros, mas a sua imaginação já a levou a ter doces da sua autoria. “Fazer doces, toda a gente faz”, garante, com a modéstia que já se adivinhava pelos gestos. Mas não há segredo? “O nosso é trabalhar sempre com produtos de primeira qualidade. Isso e muita dedicação.” A dividir-se entre o balcão do Central e o fabrico dos doces que lá estão à venda, Fátima nunca dorme mais de quatro horas por noite. E além dos dez dias por ano em que estão fechados, não existem sábados, domingos nem feriados. “Esses são os dias em que temos mais clientes”, refere, lembrando que grande parte do negócio é feito com quem está de passagem, muito mais do que com quem lá vive. “Quem prova, gosta sempre, mas ninguém come disto todos os dias, não é?”, pergunta, com um sorriso tímido de quem, afinal, esconde um segredo. “Eu como”, acaba por dizer quase em surdina, “não consigo resistir a pelo menos um bolinho por dia.”

pagar a conta Na mesa da esquina ouvimos um sotaque que nos leva até ao Porto. “Estou cá há 45 anos e não o consegui perder”, explica Teresa Monteiro, que tem a companhia do marido, José Truta, para o café depois de almoço, “um cafezinho sagrado”. Apesar de hoje se ficar apenas pela dose de cafeína, José garante que os pastéis de Vouzela são “o melhor doce do país” e acrescenta, para que não restem dúvidas, “do Minho ao Algarve”. Quando se mudaram do Porto para Vouzela e o bolo era novidade, comiam um por dia. Agora, o lugar dado à doçaria já é mais espaçado. “É de ano a ano”, refere José, quase interrompido por Teresa, que se apressa a dizer que não há sítio onde vão que não levem pastéis de Vouzela a dar a provar. “E até hoje nunca vi ninguém a fazer cara feia.”
À conversa junta-se Emília, que até de olhos fechados conseguia vir ter à mesa do casal amigo. “Temos sítio marcado no Central”, brinca, “até há quem se levante daqui quando nos vê chegar.” Para lhe servir de almoço, pede uma empada de carne. Então e o pastel? “Não sou muito dada a doces”, confessa, deixando essas provas para quando tem a companhia da neta de três anos. “Ela sim, é que adora, está sempre a pedir para lhe levar ‘daqueles que eu goto, avó’.”
Fátima ouve a conversa do balcão mas mais uma vez, desvia o olhar na hora de receber elogios. “São de uma simpatia que não há”, garante José. Teresa lembra as vezes em que Fátima lhe levou a casa o pudim que tinha feito e que sabe ser o seu preferido, ou as Páscoas em que abre um folar quentinho só para dar a provar aos clientes especiais. “O ambiente é muito familiar”, diz José. Tão familiar que a conta não é paga todos os dias. “À sexta-feira é certinho, venho cá pagar a semana toda.” O total ronda os 20 euros semanais e inclui os seus cafés, os da esposa, dos amigos e alguns doces. “Confesso, nem sempre dá para resistir a esta montra.” As cabeças acenam todas em concordância, incluindo a nossa, que junta à surpresa de quem vê tudo pela primeira vez a satisfação de ver aterrar no colo uma caixa de pastéis. “É para a viagem”, diz Fátima. 

 

Café Central de Vouzela

Ano: 1962
Dono: José Augusto Ferreira
Especialidade: Pastéis de Vouzela
Preço do café: 60 cêntimos
Preço da cerveja: 1,10€
Clube de futebol do dono: Não ligam a futebol, nem sequer há televisão no café