José Pedro Vasconcelos. “Aqui é que eu sou tudo, cheio de picos nas mãos e todo sujo”

José Pedro Vasconcelos. “Aqui é que eu sou tudo, cheio de picos nas mãos e todo sujo”


Quando chegámos, minutos antes da hora combinada, fomos encontrar José Pedro Vasconcelos a arranjar os canteiros de alfazema. Um trabalho necessário mas, mais do que isso, uma terapia, como tudo o que diz respeito à casa de campo, como indicam as tabuletas e como lhe chamaram as duas alentejanas que nos explicaram o caminho e…


Quando chegámos, minutos antes da hora combinada, fomos encontrar José Pedro Vasconcelos a arranjar os canteiros de alfazema. Um trabalho necessário mas, mais do que isso, uma terapia, como tudo o que diz respeito à casa de campo, como indicam as tabuletas e como lhe chamaram as duas alentejanas que nos explicaram o caminho e não reconheceram o nome Imani, que significa “acreditar”. Em Évora, este projecto, mais do que outros, tem o seu cunho, não por ser feito pelas suas mãos – e pelas da sua mulher, Mariana – mas por ser para as filhas, a pensar nelas. Nem é que, como dizia o poeta, um homem só esteja completo depois de plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho, até porque não há livro nenhum, mas foi Zé Pedro que plantou os 13 ciprestes que estão à entrada da propriedade, o que lhe dá um gozo especial. Tem uma relação particular com o 13, dia do seu aniversário, e com cemitérios. E foi frente a uma vista tranquila que o actor barra autor barra empresário conversou com o i, primeiro nervoso, porque ninguém habituado a fazer perguntas gosta de ser entrevistado, depois mais descontraído, mas durante todo o tempo afável. Percebe-se que gosta das coisas à sua maneira. Transparente, não disfarça indignações, não esconde defeitos, não mascara amores. Na piscina, um casal que veio do Porto diverte-se a vê-lo entrar na água de fato e gravata. Ela confessa-se fã. E é fácil ficar-se rendido. Se tivéssemos de dar-lhe um cognome, seria o incansável.

Como chegou a Évora, a este espaço?
Um dos meus passatempos era ver casas. A pessoa que vendeu a casa aos meus sogros tinha esta quinta em carteira e disse-nos para a virmos ver. Respondi que não valia a pena, era caríssima, não tínhamos dinheiro. Ele insistiu e, num domingo de 2008, salvo erro em Abril, lá viemos. Foi amor à primeira vista. Estamos a dois quilómetros do monumento megalítico mais antigo da Europa, o cromeleque dos Almendres – tem mais 4 mil anos do que Stonehenge. Este sítio é mágico, há milhares de anos houve pessoas que o escolheram para local de culto. Assim que aqui entrámos percebemos: estamos tramados. Nos primeiros meses, quase primeiro ano, foi cortar mato com quase dois metros de altura, e como não tínhamos nenhuma parte da casa habitável, dormíamos numa autocaravana. São 13 hectares, com a particularidade rara de não se ver uma única casa à volta e de demorar menos tempo a chegar daqui ao Marquês de Pombal do que quem vai de Cascais. É um projecto de vida, da Mariana, meu e das minhas filhas. 

Disse que era caríssimo. Como financiou a compra?
Isso é entrar numa zona da minha vida altamente confidencial e privada.

Passo à próxima pergunta. Como financiou a compra? 
Faz-se uma aposta e seguem-se objectivos. A minha mulher e eu somos bons a fazer contas e abdicamos de muitas coisas para que isto possa existir. Às vezes sinto-me um bocadinho emigrante dentro do meu próprio país; tantas horas dedicadas a este espaço, não vamos ver os concertos que queríamos, vamos menos vezes ao teatro do que gostaríamos. Mas quando se tem uma ideia, doa a quem doer, tem de andar para a frente. De resto, nunca tive problemas com bancos porque o Restaurante Santo António de Alfama tem algum músculo financeiro.

Continua a ser a sua reforma?
Cada vez mais. A ideia é ter sempre uma alternativa, não viver em monocultura, porque se vem uma praga ficamos sem nada. Não podemos ter só uma profissão. Hoje, Lisboa está a viver um boom, parece Roma, a crise na hotelaria não existe. O que acontece é que até Setembro trabalha-se para o Estado. Um restaurante é um bom negócio no sentido em que tem sempre mil euros no bolso e o que dar de comer aos filhos. Tirar lucro, esqueça.

O Santo António de Alfama corre bem…
Para nós, é bom. Como para os clássicos, que são intemporais, para os da moda, que abrem e fecham como papoilas. O Santo António de Alfama é outro género, abriu em 1999 e manteve-se, sempre gerido por artistas: foi criado pelo João Paulo Soares, músico da Gulbenkian, pianista, e pelo Fernando Heitor, guionista e actor, e depois foi passado para o Miguel Melo, para o Francisco e para mim. Foi sempre uma casa que, sendo gerida por palhaços, digamos assim, conseguiu ser mais resistente do que outras. Ao contrário do que possa parecer, os palhaços são gente séria.

Ser palhaço é uma defesa?
É a melhor coisa. O palhaço significa a capacidade de nos rirmos de nós próprios e de percebermos o quão ridículos somos na maior parte dos raciocínios que fazemos, porque se olharmos para o lado vemos que há sempre alguém que está mais aflito do que nós. Ter essa capacidade é fundamental para relativizar e para não sofrer.

É assim tão terrível uma pessoa levar-se a sério?
É o pior defeito. Perdemos a capacidade de nos descentrarmos de nós e de perceber que somos falíveis, também. Se não nos levarmos tão a sério, ficamos mais salvaguardados. Mas, como as plantas, também mudamos ao longo do tempo, embora a base esteja lá. Há aqui uma loja à beira da estrada que faz de oliveiras bonsais. É esquisito, mas o senhor garante que sim – e, se calhar, as oliveiras já se convenceram disso. Talvez tenha a ver com a minha formação de artista e com eu ter saído de casa muito cedo e nunca mais por lá ter passado. Tudo o que consegui foi à minha custa, muitas vezes com nariz de palhaço. E agora já consigo ser palhaço mesmo sem nariz.

Como os restaurantes, o cinema tem clássicos. “O Pátio das Cantigas” teve críticas duras…
Quando estreou, “O Pátio das Cantigas” original não foi um sucesso. Faz parte do nosso caderno de afectos, mas para a altura tem algumas falhas técnicas a que hoje até achamos graça. Não me cabe defender o filme, mas comecei a trabalhar como profissional em 1991 e as coisas têm de ser postas no seu devido lugar. Quando um crítico fala de uma obra – vamos chamar-lhe um filme –, colateralmente está a arrasar o trabalho de todos aqueles que aparecem nos créditos finais. Muitos deles – a maior parte – percebem mais de cinema do que a pessoa que escreveu a crítica. Portanto, tenho em relação à crítica um grande distanciamento. No cinema, então, é total. Com todo o respeito, eu, enquanto criador de imensas coisas, nunca tive uma crítica muito positiva ao meu trabalho. O que é facto é que existo enquanto criador. E, portanto, é-me completamente indiferente, enquanto criador de personagens, de espaços ou de peças – esta mesa à volta da qual estamos a conversar foi desenhada por mim e pela minha mulher –, o que dizem os críticos sobre elas.

É preciso ganhar imunidade à crítica?
Nem é isso. Estou completamente convencido de que em todos os trabalhos que fiz, na altura em que os fiz, dei de mim o melhor com os factores que existiam. Criticar “O Pátio das Cantigas” é muito fácil. Dizer que comparar o clássico com esta versão é comparar Batanetes com Monty Python, é comparar um arroz-doce com crème brûlée. É incomparável, são diferentes. Do que precisávamos cada vez mais é que o país fosse um sítio de respeito por quem toma a iniciativa e faz. Fácil é estar em casa a apontar feridas. Um crítico de cinema sabe que “O Pátio das Cantigas” é uma proposta comercial. Estreia nesta altura porque os emigrantes vêm a Portugal, há muita gente disponível para se rir, para recordar, para os afectos. Vai buscar filhos, pais, avós para uma hora e troca o passo de alegria. 

O que ia perguntar é se concorda que o humor está a perder sofisticação, está a tornar-se bruto?
O mundo está a tornar-se bruto, não é o humor. As pessoas estão curvadas para a frente, sobre os seus telemóveis, nos países com dinheiro, e nos países onde não há dinheiro estão curvadas a olhar para o chão para encontrar o que comer. E quando já não têm comida têm de fugir, que é aquilo a que assistimos, os migrantes a fugir da morte. E nós insensíveis a isso. Mas continua a haver propostas de humor inteligentes.

Se pudesse, o que gostaria de mudar?
De caras, não deixava que quem tem dinheiro o pudesse esconder de forma tão descarada. É isso que obriga a que mais de metade do mundo ande curvada para a frente à procura de comida. Não era preciso muito, e quem tem dinheiro iria manter-se no topo da pirâmide, mas a riqueza tem de ser urgentemente redistribuída. Viveremos sempre num sistema de capitalismo até implodir, mas não pode ser à custa de barcos e barcos de migrantes. A média de permanência de refugiados em campos improvisados é de 23 anos, gerações criadas em condições inimagináveis. Falam-nos nos mercados, podem falar-nos no que quiserem, mas quem tem dinheiro terá de o largar, cinco por cento das grandes fortunas e estaríamos muito melhor.

Imani: acreditar, sempre?
É o mais perto que consigo estar da fé. Mas vou fazer uma inconfidência: não sendo católico, gosto muito de Santo António e, como desde 2004 tenho um espaço com o nome desse santo, fui ver quem era Fernando de Bulhões e o seu trajecto e fiquei a pensar, que homem tão inteligente para a sua época, que ser tão completo. E gosto muito de igrejas. Da máquina, da empresa Vaticano, já gosto menos. Mas a fé das pessoas, respeito-a profundamente.

Nunca rezou?
Acho que não. Porque não sei rezar, mesmo. Mas sei concentrar-me numa ideia e dar o melhor da minha energia para que ela aconteça. Não sei se isso se chama rezar, acho que se chama pensar sobre as coisas. Mas não numa igreja – isso gosto do ponto de vista arquitectónico. E de cemitérios, adoro cemitérios, são sítios de paz, de calma. Ninguém nos chateia, ali. Locais tranquilos e de uma homenagem ao passado muito interessante, porque quando se deixa uma campa, alguém tem de tratar dela. Eu sou um bocadinho contra a ideia de deixar uma lápide com o meu nome, quero ser cremado, não quero deixar essa responsabilidade a ninguém. Morri, morri, desapareci. Este ano, desse ponto de vista, foi duro, partiram vários amigos. E nos cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres vêem-se turistas. Não estou a falar de góticos, falo de gente comum.

É supersticioso?
Sou.

Como é que define José Pedro Vasconcelos?
Como um homem trabalhador. [Pensa] É uma pergunta difícil. Bom, mas esta é a primeira, porque passo a vida a trabalhar. E curioso. Deixou-me sem palavras. E, ao contrário do que passa parecer, voltando ao início da conversa, um homem sério.

Diz que é de esquerda. O que é ser de esquerda?
É acreditar nas pessoas.

Os de direita não acreditam?
Acreditam de outra maneira. Para mim, ser de esquerda é ser optimista, e eu sou um optimista.

Isso é quase como dizer que não há intelectuais de direita.
Não. Isso é uma boutade horrível. O que penso é que as teias de aranha à volta daquilo que é fundamental na política, trabalhar para as pessoas, são tantas que aqueles que achamos mais capazes afastaram-se porque não têm disponibilidade para ver as carreiras académicas – estou a falar daqueles que as têm mesmo – ou percursos profissionais destruídos ao sabor de interesses económicos. Há pessoas de direita que admiro profundamente, como há pessoas de esquerda que admiro profundamente. E sou de esquerda porque a minha formação familiar foi de esquerda, porque se os meus pais fossem de direita, provavelmente eu seria de direita.

E teria outra maneira de pensar?
Não pensaria de forma muito diferente. As pessoas é que se esqueceram do que é a social-democracia, que se encontra à esquerda e à direita. E é nisso que eu acredito, numa democracia que serve as pessoas. Depois há temas fracturantes, mas esses servem para isso, são fait divers para dividir ou para aglomerar rebanhos.

Sente-se representado no parlamento?
Por exemplo, penso que os deputados deveriam trabalhar em exclusividade para o parlamento, talvez pagando-lhes mais. Suponho que poderiam existir alterações – mas aqui estou a lançar-me para fora de pé – para que as coisas funcionassem melhor e vivêssemos mais em verdade. Agora, as pessoas vão dizer: “Aumentar os salários dos políticos? Ahhhh!” Mas é verdade. Se receberem mais, não estarão lá sentados a representar os gabinetes de advogados que criam as leis para o Estado, que depois vai ter de lhes comprar pareceres para entender as leis que criaram. Talvez não seja mau. A máquina do Estado é um mikado gigante, tiro uma peça, caem três ao lado porque estão lá todos metidos uns pelos outros. É com isto que tem de se acabar, porque o dinheiro público é um bem supremo, é o graal, não é só para alguns.

A sua filha Laura tem 11 anos. Faz-lhe perguntas complicadas, sobre política, por exemplo?
A Laura é uma menina muito especial, muito dedicada à ginástica, ao desporto, ainda não tem consciência do mundo. Até porque eu tento que as minhas filhas não vejam telejornais.

Porquê?
Vão ter tantos anos para viver no mundo que, enquanto puderem ser crianças, é isso que devem ser. E os pais têm de ser pais, não são amigos. Eu, como pai, não quero que as minhas filhas vejam mil pessoas dentro de um barco. Porque não quero ter de lhes explicar porque estão mil pessoas dentro de um barco. Dou-lhes antes livros para ler. E os contos infantis já começam por ser tão cruéis, com as maçãs envenenadas e os lobos que destroem casas. O mal e o bem já estão na literatura infantil. Acredito que todos deviam proteger as crianças de ver noticiários. E só tenho filhas, achava que a minha vida ia ser calma e tranquila. Afinal, não será. Ainda por cima, são todas muito bonitas.

No entanto, ainda há pouco disse que é curioso. Lembra-se de quando começou a ver telejornais?
Ah, desde sempre. Desde que a minha mãe comprou uma Grundig a preto e branco, a prestações. Tinha oito canais, oito botões, embora só houvesse dois canais. Mas eram outros tempos. Eu sei que os filhos não nos pertencem, mas tenho obrigação de os proteger. O truque é começar a responder na medida em que forem perguntando, não vamos estar a explanar demais e o que eles queriam saber, afinal, era uma coisa simples.

Como é que as suas filhas vivem esta realidade?
Tenho a Francisca, com dois, a Carlota, com quatro, e a Laura, com 11. O campo dá às crianças uma destreza física incomparavelmente superior às da cidade, têm uma relação com as texturas diferente, não têm nojo das coisas, são pessoas especiais, têm mais ferramentas, são canivetes suíços, daqueles maiores.

Mas depois temos a Segurança Social a obrigar os colégios a proibir árvores de fruto ou areia…
As minhas filhas andam todas em escolas onde há jardins, é para isso que eu trabalho, para que, entre outras coisas, possam ter árvores à sua volta.

Não é uma questão de preço, são decretos-lei. Abaixo os abacateiros e viva o chão artificial.
O abacateiro devia obrigar a Segurança Social a ser podada.

O que lhe dá mais dinheiro?
A televisão, claro. Mas aqui é que eu sou tudo, cheio de picos nas mãos e todo sujo. Não tem comparação. Em Lisboa vivo num prédio com outro prédio à frente, uma colmeia.

Que outros projectos estão na calha?
Tenho sempre esta imagem de uma espécie de armador que tem sempre uns homens em alto--mar. Além da televisão e do Imani, o restaurante está aberto todos os dias, com pessoas a entrar às seis da manhã para limpar, e fecha às duas da manhã. Nesta altura, em que há muitos part-time, temos cerca de 20 pessoas a trabalhar. Há sempre uma máquina que avaria. As pessoas têm famílias, têm as suas vidas. E as empresas são as suas pessoas. 

O que é mais difícil na gestão das pessoas?
Mantê-las apaixonadas. Fazer com que tenham o mesmo entusiasmo que nós, pagar-lhes seguros, Segurança Social, ordenados condignos. Não quero ser um empreendedor que paga salários mínimos e depois tem grandes carros, não seria capaz.

Que carro tem?
Um Mercedes com dez anos e quase 300 mil quilómetros, comprado em segunda mão.

De que é que gosta, coisas materiais, que vícios?
Gosto de fotografia. Andava há anos para comprar uma câmara fotográfica, este ano comprei uma Leica, baratinha. Foi o meu último luxo.

Voltemos aos projectos e ao Imani. Vi que tem vinho. Tem oliveiras, também vai ter azeite?
Em Setembro vamos lançar um vinho novo, o Improvável. Já temos o Improviso, branco e tinto, produzido na Vidigueira, que são os jeans, umas calças de ganga. O Improvável será um vinho para namorar, mais bem vestido. Estabelecemos uma relação especial com o enólogo Paulo Laureano, um homem de sabores, de cheiros, a sensibilidade que não se explica sem estes sentidos. Hoje, parece que ou vem no Facebook ou não existe. Também vamos ter azeite biológico, feito no lagar de um vizinho, mas é uma produção pequenina. De resto, e para animar os fins de dia, estamos a tentar que venham cá pessoas de quem gostamos muito, como a Mafalda Veiga, o Nuno Markl e outros.

O que disse sobre o Facebook – que leitura faz do que está a acontecer às pessoas?
Os casais já não vão jantar fora um com o outro, vão jantar com os telemóveis. As pessoas vivem para a aprovação. Uma coisa que eu pensava que era dos artistas, dos actores, dos bailarinos, que são bichos carentes, querem ser amados, acarinhados pelo público, passou a ser de todos. As redes sociais dimensionaram o desespero pela aprovação do grupo, de tal forma que as pessoas ficam desesperadas se ninguém gosta de uma fotografia.

Porquê essa necessidade?
Porque as pessoas estão-se a marimbar para a literatura, estão-se a marimbar para elas próprias e para os outros, andam tão curvadas a trabalhar cada vez mais, cada vez mais, que precisam que lhes passem a mão pelo pêlo e, em última análise, têm de ser elas a passar a mão pelo seu próprio pêlo. É uma carência profunda. Eu não tenho Facebook e nem a minha mulher. E depois também temos de conhecer as nossas origens e, como sempre fomos um povo pobre, quando temos alguma coisa gostamos de mostrar.

A história não nos ensinou nada?
Há uma realidade diferente na cidade e no campo. As pessoas nas aldeias são mais sérias, até porque dependem mais umas da outras. Em Guadalupe, com perto de 200 habitantes, se um faz mal a outro ou engana no preço da lenha, está tramado. As comunidades auto-regulam-se. As pessoas não são menos sérias em Portugal do que no norte da Europa, mas lá os mecanismos de controlo são menos falíveis. A Suécia era um país de lenhadores e de água. Mas importaram-se com as pessoas e o dinheiro de todos foi para todos, o sistema de controlo foi mais eficaz.

E os cidadãos tornaram-se mais responsáveis?
Mas aí há uma grande diferença: não são católicos, são protestantes. O contador dos pecados não existe no norte da Europa.

Mas nós gabamo-nos de ser uma sociedade laica…
Mas não somos. Ou seja, mesmo os não católicos têm uma formação católica. E é diferente, quando tenho a possibilidade da confissão, fazer o reset dos pecados e ficar com o contador a zeros. Os protestantes não têm isso. É como ser empreendedor em Silicon Valley e fazer uma empresa de garagem em que abro a porta e está tudo verde, bonito, arranjado. Se tentar fazer o mesmo na Suécia, é mais difícil, porque antes de empreender tenho de ir buscar a pá e limpar dois metros de neve que estão à frente da porta.

Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho. É um homem completo?
Não. Falta-me o livro, mas não seria isso. Até porque há aqueles que já escreveram muito mais livros do que aqueles que leram, não é? [risos] Já tive editoras a proporem-me escrever livros e recusei. Então propuseram-me um autor--fantasma. Eu respondi que no dia em que publicasse um livro seria escrito por mim, mas não prevejo que isso vá acontecer. A literatura é uma arte muito precisa, muito dinâmica e que deve ser entregue aos escritores. O seu a seu dono.