O combate dos chefes. Uma aventura do partido socialista

O combate dos chefes. Uma aventura do partido socialista


António Costa costuma dizer que o PS sempre teve problemas com as presidenciais. Comparado com o passado, o conflito entre apoiantes de Nóvoa e de Maria de Belém parece quase uma questão menor.


Soares VS Eanes

A 1 de Setembro de 1980, uma segunda-feira, um grupo de 27 notáveis dirigiu-se ao Palácio de Belém para apelar pessoalmente à candidatura do general Ramalho Eanes. Entre eles estava Mário Soares, secretário--geral do PS, acompanhado do jovem Vítor Constâncio e do histórico Vasco da Gama Fernandes, entre outros. Ramalho Eanes respondeu ao chamamento e três dias depois, a 4 de Setembro, anunciou a recandidatura – ou, como os jornais lhe chamaram na época, a “aceitação da recandidatura”. 

“Respondo, sem hesitação, que aceito a responsabilidade que o vosso apelo e o vosso apoio representam.” As presidenciais estavam marcadas para Dezembro, mas havia legislativas a 5 de Outubro – a mistura entre os dois actos eleitorais não é de agora, tem sido um must permanente da democracia.

Em 5 de Outubro de 1980, os portugueses dão maioria absoluta à Aliança Democrática, composta pelo PSD, CDS e PPM. O PS de Mário Soares, que concorreu sob uma coligação chamada Frente Republicana e Socialista, que integrava dois partidos pequenos, a UEDS de Lopes Cardoso e a ASDI de Sousa Franco, teve uma derrota estrondosa. A 14 de Outubro, Ramalho Eanes faz uma espécie de conferência de imprensa no Palácio de Belém onde se distancia da derrota eleitoral da esquerda e tenta aproximar-se da direita vencedora, com vista a conseguir melhor resultado para as eleições presidenciais.

Nessa conferência de imprensa afirma que se identifica com o “modelo de sociedade” proposto pelo PSD, CDS e PPM e que “não há diferenças insanáveis entre o Presidente da República e a maioria”. Num esforço de conquista do eleitorado que deu a vitória à AD, recorda que demitiu várias vezes Mário Soares e aponta os seus pergaminhos anticomunistas, nomeadamente o seu papel no 25 de Novembro (mas, no entanto, o candidato do PCP Carlos Brito acabaria por desistir a favor de Eanes).

O PS já tinha decidido apoiar Mário Soares. Mas Soares – que nunca adorou Ramalho Eanes, até por causa dos conflitos e demissões que Eanes expressamente invocou na conferência de imprensa – opta por uma fórmula totalmente inédita, a auto-suspensão temporária do cargo de secretário-geral do PS. Manuel Alegre apoia Soares e apela à desistência de Eanes da corrida presidencial, falando, aliás, numa “vaga de fundo” que percorreria o PS de apoio à posição de Mário Soares.

Mas a vaga de fundo nunca existiu. A Comissão Nacional do PS reafirma o seu apoio à candidatura de Ramalho Eanes. Mário Soares aceita a decisão da Comissão Nacional e manda desconvocar uma manifestação de apoio à sua posição que já estava marcada para o Largo do Rato. Eanes ganhou as presidenciais e Soares voltou a ser secretário-geral do PS.

Soares VS Zenha

Conhecem-se na década de 40, na altura militantes do PCP, mas é no PS, ambos fundadores em 1964, que cimentam uma grande amizade. Grande, mas não eterna, já que se desentendem definitivamente numas presidenciais em 1986 e a propósito de um candidato chamado Ramalho Eanes.

Corria então o ano de 1980. Mário Soares era o secretário-geral do PS quando Salgado Zenha convence o partido a apoiar a recandidatura do general Ramalho Eanes, contra a vontade do próprio secretário-geral, que se demite da liderança do partido.

O processo eleitoral é marcado pela trágica morte de Sá Carneiro, então primeiro-ministro e o ministro da Defesa Adelino Amaro da Costa, mas isso não impede que o candidato apoiado por ambos e pela Aliança Democrática, o general Soares Carneiro, seja derrotado logo na primeira volta. O General Ramalho Eanes vence de novo, apoiado pelo PS, mas contra a vontade do seu secretário-geral demissionário.

Soares regressa à direcção do partido no ano seguinte mas não perdoa a Zenha. Pela ‘mão’ de Soares, Zenha será empurrado para fora do PS. É levantado um processo disciplinar ao socialista e advogado de Braga que acaba por ser expulso do partido.

De costas voltadas, Salgado Zenha e Mário Soares voltar-se-iam a encontrar. Corria então o ano de 1986 e o confronto acontece numa concorrida eleição a Belém. Salgado Zenha colhe o apoio do PCP e do PRD, um novo partido de inspiração e fundação Eanista, nascido um ano antes e que logo fizera furor como terceiro mais votado nas primeiras legislativas  ganhas por Cavaco, com maioria relativa.

Voltando às presidenciais de 1986, Mário Soares tem o PS consigo, ambos com um adversário à direita, Diogo Freitas do Amaral. Mas há mais uma candidatura que, na perspectiva dos comunistas, acabará por enfraquecer o projecto de Zenha. Trata-se da candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo que disputa com Soares e Zenha o eleitorado à esquerda e recolhe apenas 418.961 votantes. Poucos mas que seriam suficientes, caso Zenha os recolhesse todos, para ser ele a ir a uma segunda volta. Zenha fica-se por 1.185 683 votos (20%) e Soares leva a melhor com mais cerca de 300 mil votos, 1.443.683 (25, 43%), o que lhe dá direito a passar à segunda volta contra Freitas que, apesar do pleno da direita, não vai além de 46,31%.

E é nesta altura que, como referiu recentemente Manuel Alegre ao i, “Cunhal dá uma lição à esquerda”: reúne os comunistas em congresso, convence-os a ‘engolir um sapo’, e transporta para Soares todos os votos necessários para derrotar Freitas do Amaral. Soares ganha a sua primeira eleição presidencial, mas o corte de relações com Zenha seria irreversível, já que nem o espírito conciliador de António Guterres, mais tarde, os conseguiria reconciliar.

Sampaio VS Guterres

Jorge Sampaio tinha perdido as eleições legislativas de 1991, que deram a segunda maioria absoluta a Cavaco Silva. Guterres declarou-se “em estado de choque” com os resultados eleitorais do PS e candidatou-se a secretário-geral. Jorge Sampaio não desistiu facilmente e apresentou a sua recandidatura ao cargo. O PS ficou partido em dois, mas António Guterres venceu a disputa interna.

Jorge Sampaio, que tinha sido eleito presidente da Câmara de Lisboa em 1989, mantém o seu posto de autarca. Mas começa a sonhar com o voo para Belém: Mário Soares terminaria o seu segundo mandato como Presidente da República em 1986.

A questão é que no secretariado de António Guterres ninguém apreciava particularmente Jorge Sampaio. As feridas da campanha interna tinham sido profundas e dolorosas. Os campos tinham-se extremado a pontos inimagináveis. Na prática, eram duas alas que se odiavam bastante publicamente. Para o secretariado do PS haveria duas candidaturas muito mais lógicas do que a de Jorge Sampaio: Fernando Gomes, o antigo presidente da Câmara do Porto na época todo-poderoso no PS, que queria ser candidato a Belém. E ainda Almeida Santos, cuja candidatura foi alimentada por vários históricos, nomeadamente entre o grupo soarista.

Jorge Coelho foi a ponte entre António Guterres e o embrião da candidatura presidencial de Jorge Sampaio. Coelho, o braço-direito de António Guterres desde a hora zero do avanço de Guterres para a candidatura a secretário-geral, participa numas reuniões que se realizavam todos os domingos à noite na casa de Jorge Sampaio, perto da rua Artilharia 1, em Lisboa.

Era um “petit comité” onde, além de Jorge Coelho, participava Lopes Cardoso (um sampaísta de sempre que depois foi para Belém com Jorge Sampaio), o actual secretário-geral do PS, António Costa, que depois foi director de campanha de Jorge Sampaio e também o psiquiatra José Gameiro.

Quando decide avançar com a candidatura à Presidência da República, Jorge Sampaio não tem a direcção do PS com ele. Tinha Jorge Coelho, que participava nas reuniões com a bênção de António Guterres, mas não tinha o secretariado.

É por isso que decide apresentar a sua candidatura sozinho, na Aula Magna, sem figuras socialistas ao lado. Em 2 de Fevereiro de 1995, quase um ano antes das eleições presidenciais que se realizariam em Janeiro de 1996, Sampaio anuncia a candidatura no lugar onde iniciou a sua carreira política, nas lutas estudantis da Faculdade de Direito de Lisboa. O PS acaba por declarar apoio oficial ao candidato Jorge Sampaio, que é eleito à primeira volta, depois do candidato do PCP, Jerónimo de Sousa, ter desistido a seu favor.

Alegre VS Soares

Soares e Alegre não eram só dois camaradas de partido, eram amigos de longa data quando, em 2006, disputaram as eleições presidenciais. Durante décadas travaram lutas juntos, mas deixaram de se falar até ao dia em que Soares foi hospitalizado em estado grave e os dois fizeram as pazes.

No dia 7 de Novembro de 2004, os amigos de Soares organizaram-lhe uma festa de aniversário com cerca de 2000 pessoas, na FIL. Aos 80 anos, Soares pôs um ponto final na política. “Basta”. Nessa altura, o PS começava a discutir as presidenciais e entre os amigos de Soares a ideia começava a ganhar adeptos. “Quando entrei naquele enorme salão da FIL – cerca de duas mil pessoas sentadas á mesa – senti que a maior parte tinha em mente essa ideia de uma nova candidatura. Mas eu não queria”.

Na cabeça de Alegre já existia a ideia de ser candidato. Ao mesmo tempo, Soares era pressionado para avançar pela terceira vez. Carvalho da Silva e outras figuras de referência da esquerda incentivam-no a candidatar-se e o ex-presidente convence-se de que com o apoio do PS e da esquerda pode vencer. Mas o factor decisivo foi Sócrates, que promete a Soares dar-lhe todas as condições para a campanha

“Tive uma conversa com o Sócrates, que foi para mim decisiva. Para poder avançar– disse-lhe – precisava que ele me prometesse três coisas. Responsabilizar-se pelo dinheiro necessário para a campanha, que eu não tinha, fazer com que o PS – os seus quadros e militantes – participassem na campanha e, finalmente, aceitar ter eu liberdade, no plano político, para orientar a campanha . Disse-me a tudo que sim, sem qualquer dificuldade”, conta Mário Soares.

Sócrates não gostava de Alegre, mas nas conversas entre os dois foi alimentando a ideia de que o poeta podia ser o candidato apoiado pelo partido. Alegre sentiu-se traído quando o PS  optou por Mário Soares. “O secretário-geral do partido pediu-me para reflectir, e quando fiz essa reflexão apareceu outra solução”, lamentou Alegre.

Alegre ainda vacilou e, num discurso em Viseu, um dia antes de Soares formalizar a candidatura, recusou dividir a esquerda. Mas, mesmo com as principais figuras do PS ao lado do candidato apoiado pelo partido, entrou na corrida como independente e teve mais 350 mil votos do que Soares.

A amizade ficou estragada. Deixaram de se falar. Só sete anos depois, quando Soares foi internado de emergência em estado grave, os velhos amigos fizeram as pazes. “Voltámos a ser amigos desde que eu estive a morrer e ele, preocupado, todos os dias falava aos meus filhos e à minha mulher. (…) Como no passado. A Amizade é tão importante – ou mais – do que a política. O que lá vai, lá vai”, disse Soares, em entrevista ao i, quando fez as pazes com Alegre.