A “posse” de anomalia psíquica


A anomalia psíquica é, médica e juridicamente, uma enfermidade. Por isso não se possui. Padece-se. Sofre-se.


Uma das normas que mais “espécie” hoje me faz é a do artigo 9º n.º 3 Código Civil. Reza assim: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Nessa norma o Legislador ordena-nos a todos que, na interpretação da Lei, se presuma que ele próprio não só acertou nas soluções que encontrou, como exprimiu correctamente o seu pensamento. É a presunção do acerto do legislador.

Ao contrário do que o leitor possa imaginar, são milhões as vezes que os Tribunais invocam esta norma e respectivo princípio subjacente para resolver casos concretos.

Porém, o que o “judiciário” esquece é que o presumido Legislador que assim se julgou a si próprio era o legislador pré-1966. Outro legislador, de outro tempo e de outra têmpera e forma. Gente de “comprovada ortodoxia em gramática portuguesa”. Esse legislador tinha os pergaminhos necessários e suficientes a tal grau de presunção. Era, então, a Lei feita com ponderação. Assente em fundos conhecimentos históricos, sociais, jurídico-científicos. Para legislar convocavam-se os melhores dos melhores. E eram mesmo “os melhores”, não uns “melhores quaisquer”, formados não se sabe bem onde, não se sabe bem por quem, nem para quê.

Pior que tudo: não eram (e o plebeísmo purga-se citando o laureado Carlos do Carmo), uns “bandos de pardais”, que dos bancos das faculdades, ou de estágios mal-amanhados, se vêem alçados a Adjuntos, quando não mesmo a Secretários de Estado. Tudo sem prejuízo dos títulos académicos “possuídos”. Daí que cada vez que se vê um Tribunal citar o art.º 9º n.º 3 do Código Civil seja de arrepiar.

O bom exemplo, que vale por todos, é o teor do art.º 3º n.º 1 al. c) do Dec.-Lei n.º 50/2013 (há bem pouco alterado pelo Dec.-Lei n.º 106/2015, onde as tonteiras se mantiveram), e sucessor do art.º 2º n.º 1 al. b) do Dec.-Lei n.º 9/2002, que instaurou o Regime do Álcool.

A norma diz assim: “é proibido facultar (…), vender ou (…) colocar à disposição, bebidas alcoólicas em locais públicos e em locais abertos ao público: (…) c) a quem se apresente notoriamente embriagado ou aparente possuir anomalia psíquica”[1].

Deixando aqui de lado o que seja a apresentação em estado de notória embriaguez, permita-se lembrar algo óbvio para qualquer jurista aprovado em Teoria Geral do Direito Civil de outros tempos: a anomalia psíquica é, médica e juridicamente, uma enfermidade. E uma enfermidade não se “possui”. Padece-se. Sofre-se. Dela é-se portador.

Possuir, para um jurista, de outros tempos, é um conceito jurídico clarinho, clarinho, mesmo que difícil de explicar numa Oral… e pode possuir-se muita coisa, mas juridicamente não se possuem anomalias psíquicas… desde logo porque a anomalia psíquica não é um “direito”!

Excepto para quem use a incompetência como Alvará profissional.

Advogado

Escreve à sexta-feira

 

[1] Sendo obrigatório um Aviso deste teor em todos os locais onde se vendam bebidas alcoólicas, e fazendo fé nos dados da Pordata, este Aviso estaria afixado, já em 2012, mais de 83.000 vezes por esse País fora. 

A “posse” de anomalia psíquica


A anomalia psíquica é, médica e juridicamente, uma enfermidade. Por isso não se possui. Padece-se. Sofre-se.


Uma das normas que mais “espécie” hoje me faz é a do artigo 9º n.º 3 Código Civil. Reza assim: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Nessa norma o Legislador ordena-nos a todos que, na interpretação da Lei, se presuma que ele próprio não só acertou nas soluções que encontrou, como exprimiu correctamente o seu pensamento. É a presunção do acerto do legislador.

Ao contrário do que o leitor possa imaginar, são milhões as vezes que os Tribunais invocam esta norma e respectivo princípio subjacente para resolver casos concretos.

Porém, o que o “judiciário” esquece é que o presumido Legislador que assim se julgou a si próprio era o legislador pré-1966. Outro legislador, de outro tempo e de outra têmpera e forma. Gente de “comprovada ortodoxia em gramática portuguesa”. Esse legislador tinha os pergaminhos necessários e suficientes a tal grau de presunção. Era, então, a Lei feita com ponderação. Assente em fundos conhecimentos históricos, sociais, jurídico-científicos. Para legislar convocavam-se os melhores dos melhores. E eram mesmo “os melhores”, não uns “melhores quaisquer”, formados não se sabe bem onde, não se sabe bem por quem, nem para quê.

Pior que tudo: não eram (e o plebeísmo purga-se citando o laureado Carlos do Carmo), uns “bandos de pardais”, que dos bancos das faculdades, ou de estágios mal-amanhados, se vêem alçados a Adjuntos, quando não mesmo a Secretários de Estado. Tudo sem prejuízo dos títulos académicos “possuídos”. Daí que cada vez que se vê um Tribunal citar o art.º 9º n.º 3 do Código Civil seja de arrepiar.

O bom exemplo, que vale por todos, é o teor do art.º 3º n.º 1 al. c) do Dec.-Lei n.º 50/2013 (há bem pouco alterado pelo Dec.-Lei n.º 106/2015, onde as tonteiras se mantiveram), e sucessor do art.º 2º n.º 1 al. b) do Dec.-Lei n.º 9/2002, que instaurou o Regime do Álcool.

A norma diz assim: “é proibido facultar (…), vender ou (…) colocar à disposição, bebidas alcoólicas em locais públicos e em locais abertos ao público: (…) c) a quem se apresente notoriamente embriagado ou aparente possuir anomalia psíquica”[1].

Deixando aqui de lado o que seja a apresentação em estado de notória embriaguez, permita-se lembrar algo óbvio para qualquer jurista aprovado em Teoria Geral do Direito Civil de outros tempos: a anomalia psíquica é, médica e juridicamente, uma enfermidade. E uma enfermidade não se “possui”. Padece-se. Sofre-se. Dela é-se portador.

Possuir, para um jurista, de outros tempos, é um conceito jurídico clarinho, clarinho, mesmo que difícil de explicar numa Oral… e pode possuir-se muita coisa, mas juridicamente não se possuem anomalias psíquicas… desde logo porque a anomalia psíquica não é um “direito”!

Excepto para quem use a incompetência como Alvará profissional.

Advogado

Escreve à sexta-feira

 

[1] Sendo obrigatório um Aviso deste teor em todos os locais onde se vendam bebidas alcoólicas, e fazendo fé nos dados da Pordata, este Aviso estaria afixado, já em 2012, mais de 83.000 vezes por esse País fora.