Chegar a uma terra e perguntar pelo Café Central é como chegar à praia e perguntar onde está o mar. “Ó menina, é ali”. E basta virar a cabeça na direcção em que o dedo se estica para darmos conta de que estamos na direcção certa. No Eixo, o Central é café de beira de estrada, literalmente, com um passeio em que dificilmente cabe mais que uma pessoa a separar o estabelecimento da Nacional 230.
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Passamos a porta e atrás do balcão de madeira está Carlos Oliveira, que pegou no café há sete anos e garante que com ele trouxe a malta jovem da freguesia. “Quando cá cheguei era só velhotes a beber tacinhas de vinho, agora é mais malta jovem a pedir outras coisas.” Daí que até os pedidos ao balcão sejam diferentes e o gin tónico tenha passado para um dos primeiros itens da lista.
Depois de fazer um curso de bartender, Carlos deixa uma dica a quem se acha entendedor. “As pessoas tendem a personalizar o gin, mas é uma bebida simples: água tónica, lima e gin.”
Apesar de querer assumir um conceito mais moderno, Helena Gaspar, a mãe de Carlos, que deixou o trabalho como empregada de limpeza para assumir o balcão do Central, garante que ainda hoje se surpreende com alguns pedidos. “Sabia que um pirata é uma cerveja servida num copo de vinho”, pergunta, sem dar espaço para a resposta, “e que uma latinha é vinho tinto servido num copo de vinho do Porto?”
A nossa cara de espanto foi a mesma que Helena fez nas primeiras vezes que teve de atender estes pedidos. “Começar a trabalhar num café aos 50 anos foi uma mudança muito grande na minha vida, mas até me habituei com facilidade.”
Como trabalha apenas durante o dia – deixando a noite e madrugada para Carlos –, fica-se pelos pedidos mais básicos: café, cerveja e vinho, mesmo esses cada vez mais raros.
“O pessoal agora pede um café e fica cá uma tarde inteira”, explica Carlos. Helena recorre à memória de há uns cinco anos, altura em que nos dias de jogo tinha de sair por uma porta do café e entrar por outra para servir a clientela, tal era o aglomerado de gente. “Mesmo assim, só há uma equipa que enche o Central: o Benfica, claro.”
A emigração e a abertura de novos cafés – num raio de 1,5 quilómetros existem pelo menos dez – ditam um negócio cada vez mais difícil de segurar para a família Oliveira. Além das contas mensais a pagar, Carlos invoca com revolta algumas dos extras que é obrigado a despender.
“São 300 euros por ano só para ter o certificado da segurança alimentar”, explica, recorrendo ao placard onde afixa toda a papelada obrigatória. “Está a ver este autocolante?
Já paguei 200 euros de multa por não o ter visível a provar que faço reciclagem.” O aumento do IVA também não foi fácil de ultrapassar, até porque levou a um aumento de preços de quase todos os produtos, o que originou queixas quase diárias de quem estava habituado a valores de outros tempos.
“Lidar com clientela amiga é mais difícil do que atender estranhos”, assume. “Pensam que só por serem nossos amigos podem dizer e fazer o que querem no café.” Fazendo um balanço dos últimos sete anos, conclui que perdeu amigos, mas acredita que isso só o aproximou dos verdadeiros. “O anterior dono tinha-me avisado, ‘agora é que tu vais ver quem são realmente os teus amigos’, e não é que tinha razão?”
O 25 de abril da discórdia
Quem o vê sentado ao balcão não imagina que Manuel Morgado foi o dono do café durante mais de 30 anos. “Prefiro ser cliente, dá menos chatices.” Helena abana a cabeça em sinal de afirmação e serve-lhe o cafezinho da praxe. No seu tempo de patrão, o espaço agregava o café, uma mercearia e uma loja de roupa, tudo gerido pela família. “Era aqui gente que nem imagina, nem havia sítio para sentar.”
Mesmo quando mais tarde centrou o negócio apenas no café, era difícil responder à quantidade de gente que todos os dias lhe enchia o espaço, fosse para beber ou para jogar. Manuel aponta para o corredor que vai dar a uma sala das traseiras com bilhar, matraquilhos, flippers e mesa para jogar às cartas. “Está tudo na mesma”, garante.
Manuel garante que nunca foi preciso chamar a polícia para controlar quem bebia demais, nem mesmo depois do 25 de Abril, altura em que começou aquilo a que chama “descalabro”. “Depois da revolução, era viver com o coração nas mãos e a faca ao pescoço”, garante. Para Manuel, os revolucionários “tomaram a liberdade em exagero” e as pessoas “estavam completamente descontroladas”.
O saudosismo de outros tempos fazem com que aponte o tempo de Marcelo Caetano como o melhor da nossa história recente. “Havia respeito pelas pessoas e pela história do país. A partir daí foi um Deus-me-livre.”
Entrega a chávena à D. Helena antes de sair e fala como se lhe deixasse um conselho. “Uma pessoa aqui tem de ouvir e calar, o cliente tem sempre razão.” Ao recordar os seus tempos de patrão, garante que não se importava quando o cliente se sentava sem pedir nada.
“Ter pessoas chama sempre gente, é por isso que eu venho cá muitas vezes só passear.” Helena ri-se e abana a cabeça, mas desta vez em tom negativo. “Até logo, sr. Manuel.” “Até já, menina”, responde ele, apesar de apenas trocar o interior do café por uma cadeira encostada à porta.