1. Prometi, há duas semanas, escrever sobre a questão da autonomia do Ministério Público (MP) e sobre o modo como esta sua característica constitucional se deverá articular, externa e internamente, no âmbito da reforma do seu estatuto.
Interrompi essa reflexão específica para me questionar, entretanto, sobre o sentido das opções que fazemos ao longo da vida e as circunstâncias em que elas decorrem.
Vou, portanto, retemperado por tais cogitações, retornar à questão e procurar cumprir aquela promessa.
2. Antes, porém, importa situar devidamente a autonomia do MP enquanto característica fundamental desta magistratura, no enquadramento em que é hoje reconhecida a nível europeu.
A autonomia do MP só tem, de facto, significado quando referida à sua acção – à sua iniciativa processual – na defesa da legalidade democrática.
É assim tanto no que se refere ao exercício da acção penal – a sua incumbência primordial – como no que tange a todas as suas outras competências constitucionais e legais.
Ao MP compete agir com objectividade para que as leis da República sejam respeitadas por todos.
A sanção pela violação da lei ou a reparação dos danos que tal infracção causou não podem, com efeito, depender apenas da vontade individual de quem, porventura, sofreu por sua causa ou do arbítrio de quem tem poder para as impor ou a elas obstar.
A actividade do MP deve, portanto, resultar apenas da própria força da lei; o mesmo é dizer, resultar da vontade dos cidadãos que, através dos seus representantes, a fizeram aprovar no parlamento para ser respeitada por todos.
A autonomia do MP justifica-se, assim, na ideia de que a lei se deve efectivar sempre e independentemente da vontade de todos quantos exercem qualquer tipo de poder capaz de influir nos destinos individuais e da comunidade.
Funda-se, pois, na necessidade da existência de um órgão de iniciativa judicial independente que – agindo apenas por critérios de legalidade estrita e com objectividade – permita depois aos tribunais fazer justiça igual para todos.
Compreendida a sua verdadeira importância constitucional e política e o sentido de coesão social que a autonomia do MP pressupõe, ficam desde logo afastadas todas as interpretações que procuram firmar a acção desta magistratura na noção de agente de um poder circunstancial, mesmo que legítimo, ou, mais radicalmente, na de contrapoder.
Limitada pela lei e pela obrigação de objectividade, a acção do MP deve ficar sempre arredada de qualquer pretensão de o associar a alguma forma de realização de objectivos políticos externos à própria lei; daí a sua autonomia.
3. Para que o país, os cidadãos e os próprios magistrados se sintam seguros de que o MP actua movido apenas por tais desígnios, o constituinte previu a existência de um órgão superior de controlo – o Conselho Superior –, plural na sua composição profissional e pluralista na expressão das sensibilidades que integram a vida democrática nacional.
As funções desse órgão multifacetado devem, portanto, dirigir-se essencialmente ao controlo da realização das condições efectivas da autonomia do MP.
Isto, tanto no plano externo – e, portanto, no da sua actividade processual – como, no plano interno, no respeitante à garantia de que a gestão das carreiras e a disciplina dos magistrados não afectam a objectividade das suas actividades judiciais.
É, pois, sobretudo como órgão de garantia que o Conselho Superior existe e deve funcionar.
De como ele se deve relacionar com a hierarquia do MP, falaremos depois.
Jurista. Escreve à terça-feira