As novas missas de Canelas. O que tem o padre Roberto?

As novas missas de Canelas. O que tem o padre Roberto?


O padre sensação de Canelas vai a pé a Santiago de Compostela. Despediu-se numa missa em que não poupou críticas ao bispo do Porto.


O sétimo autocarro já está quase completo. No dia 20 de Setembro, a Praça do Obradoiro, em Santiago de Compostela, vai encher-se de canelenses. Mais de 300 vão à Missa do Peregrino, às 11h espanholas, para receber o antigo padre da freguesia – afastado há quase um ano por ordem do bispo do Porto e que se tornou um fenómeno de popularidade.

Em Canelas há quem durma com o retrato de Roberto Carlos na mesinha de cabeceira, quem envergue t-shirts e bonés de apoio ao sacerdote e quem prefira enterrar os mortos sem a presença de qualquer padre. Nos últimos meses, fizeram-se cordões humanos e vigílias com mais de três mil pessoas e o novo padre de Canelas precisou de ser escoltado pela GNR. A exigência do povo mantém-se: Roberto Carlos deve voltar à freguesia.

O braço-de-ferro com o bispo promete durar, mas D. António dos Santos vai poder respirar de alívio durante 40 dias e 40 noites. O padre irreverente que se recusa a ser transferido de Canelas vai deixar de fazer missas nos jardins da freguesia durante uns tempos: em vésperas de fazer 40 anos, decidiu meter-se a pé pelo Caminho Francês até Santiago de Compostela.

Anteontem, despediu-se do grupo que o segue religiosamente numa missa celebrada em Canelas, em frente à casa onde viveu Eça de Queirós. Chegou atrasado, mas as cerca de 300 pessoas e o coro afinado – que antes cantava na Igreja de São João Baptista – não arredaram pé. Roberto Carlos celebrou de óculos de sol, abençoou um casal que fazia 40 anos de casamento, cantou os parabéns aos fiéis que fizeram anos no mês de Julho e distribuiu a comunhão aos presentes. Na hora de fazer a homilia, não se inibiu de criticar quem o critica e o bispo do Porto.

“Está muito sol, mas não tenham medo destes raios quentes. Aqui nesta terra ainda há muito caruncho e o sol ajuda a purificar, para que fique tudo limpinho”, começou por dizer. O sermão continuou, centrado nas três leituras de anteontem – que, sublinhou, “vão muito de encontro aos problemas de Canelas”.

A começar pela história do profeta Elias, deprimido e agastado com a “maldade, a calúnia e a inveja” do mundo. “Longe de mim ser o profeta Elias, mas identifiquei-me com ele. Há um momento em que ninguém o ouvia, apesar de ele amar a Deus.
 
Refugiava-se numa gruta, não queria ver ninguém, estava farto do mundo”, explicou, continuando: “O profeta Elias estava desiludido com as pessoas, já naquela altura se queixava que o mundo estava podre e entra como que em depressão. Foi para o deserto, para debaixo de uma árvore, sem pão nem água, à espera da morte.

Estava tão triste, tão triste que queria morrer. Nunca me aconteceu isso, já passei por muito mas nunca desejei a morte. Ainda não meti nenhum calmante na minha boca, não foi necessário até aqui e não será necessário daqui para a frente”.

Mesmo assim, continuou Roberto Carlos, há “semelhanças” entre a sua história e a de Elias. Quando o profeta decidiu seguir as instruções de um anjo que lhe ordenou que não desistisse da vida, faz-se ao caminho durante 40 dias e 40 noites numa jornada espiritual até se encontrar com Deus. “Eu também me estou a preparar para caminhar 40 dias”, notou. “É muito bom quando nos identificamos com o Evangelho. Quando as coisas já não mexem connosco não vale a pena.

Quando o esposo não mexe com a esposa, os filhos com os pais, os pais com os filhos, quando o bispo não mexe connosco e nós não mexemos com o bispo algo está mal”, continuou, acrescentando: “Às vezes há moralismo e hipocrisia bem perto de nós. Dizem: ‘eu amo muito a Deus e tenho muito amor a Canelas, mas depois é só fachada. Depois rezam, andam na calúnia, na maledicência”.

Jesus, recordou Roberto Carlos, condenou os que andavam à sua volta a murmurar. “Falar entre os dentes, não dar a cara, falar mal, criticar. Tudo isto entristecia o coração de Jesus”. 
Mas em Canelas é diferente: “Nós estamos aqui e damos a cara porque não temos medo de dar a cara pela verdade e pela justiça, e é isso que incomoda, que marca a diferença. Tal como Jesus incomodou. Quem vive na maledicência anda sempre a murmurar, não vem para lado nenhum dar a cara, mas Jesus deu a cara e nós damos a cara.

Eu dou a cara. Damos todos a cara, não tenhamos medo”, apelou. Pelo meio, Roberto sublinhou que as três leituras de anteontem foram lidas em todas as igrejas. “E, como tal, devem ter sido lidas na Sé, no Paço [episcopal, onde vive o bispo], não sei até que ponto terá tocado alguém. Uns gostam de estar diante do sol, outros metem-se na toca, na escuridão, mas o sol e a palavra de Deus brilham para todos”, rematou.

No final da missa, o líder do movimento UCR! – Uma Comunidade Reage subiu ao altar improvisado para entregar o dinheiro obtido do ofertório – 853,39 euros – a Roberto Carlos. “Não conseguiremos nunca agradecer tudo o que tem feito por nós, neste ano que tem sido duro para nós, mas muito mais duro para o padre Roberto, mas ninguém nos vai calar ou derrubar”, prometeu Miguel Rangel. 

Duas versões da mesma história

A guerra santa já leva mais de um ano e começou no dia do padroeiro da freguesia. A seguir à missa anual, e antes de arrancar a procissão do São João, Roberto Carlos leu um longo comunicado à população, em que anunciava que tinha sido afastado da paróquia e que teria de ir embora em Setembro, devido a pressões e ameaças de pessoas “importantes” da cúria do Porto. O conflito, contou, teria começado meses antes por causa da instalação de uma estátua do padre Gabriel, antigo sacerdote de Canelas e que teve uma morte trágica na década de 1980: deixou-se cair quando andava a decorar a Igreja do Bonfim, no Porto, e morreu.

Desde o Verão do ano passado, circulam na diocese do Porto – e nas páginas dos jornais – duas versões da mesma história. A da facção do padre RobertoCarlos, que esteve oito anos à frente de Canelas e agora vive com a mãe em Paredes, insiste que na origem do problema está a instalação da estátua – encomendada por uma comissão de leigos a uma escultora local por 20 mil euros. Roberto, conta o povo, não era contra a homenagem ao padre Gabriel.
 
O que o afligia era o dinheiro que se ia gastar e que, defendia, deveria ser dado aos pobres de Canelas. Mas a oposição terá sido quanto bastou para ser afastado.

No dia a seguir à procissão do São João, o povo de Canelas juntou-se. Mais de 600 pessoas protestaram contra a saída “injusta” do padre e nasceu, assim, o movimento UCR!. Miguel Rangel, o líder, conta que o bispo do Porto ainda voltou atrás e comunicou a Roberto que ficaria em Canelas. Até que, a 27 de Outubro do ano passado, “voltou atrás” e o padre recebeu nova ordem para abandonar a paróquia, que teria efeito a partir de 3 de Novembro – dia em que entra em cena um novo padre para o substituir, Albino Reis, que precisou de ser escoltado pela GNR para chegar à igreja. 

Os ânimos foram acalmando com os meses e os guardas já não são chamados a Canelas, mas a população continua a rejeitar o padre Albino. “Durante a semana, vamos às missas e ficamos calados o tempo todo, é a nossa forma de protestar, em silêncio”, conta uma canelense. Na internet, continuam a multiplicar-se vídeos e textos de apoio ao padre Roberto e há mais de uma dezena de grupos no Facebook que denunciam “a vergonha da diocese do Porto em Canelas”.

O que caiu mal ao povo, explica Miguel Rangel, foi a postura que o novo padre assumiu desde o primeiro dia e que ficou expressa numa entrevista ao “Correio da Manhã”, em que avisou que já tinha trabalhado na Amazónia e que, por isso, não tinha “medo de índios e pistoleiros”. “Além disso, ele sabia o que estavam a fazer ao padre Roberto e não mostrou solidariedade para com um colega. Por isso, é cúmplice”, acrescenta o líder da UCR!. 

Os abusos sexuais

A juntar à tensão, Roberto Carlos queixa-se de ter sido vítima de rumores de que seria abusador sexual de crianças. Em 2003, terá denunciado um padre de Fafe, seu colega na Congregação dos Dehonianos, por pedofilia. Aparentemente, o processo de investigação canónica não deu em nada e, no meio da confusão da saída de Canelas, Roberto terá sido avisado de que “se andava a dizer que era ele quem tinha abusado de crianças”.

É aqui que entra a versão do bispo do Porto. D. António dos Santos diz que Roberto lhe escreveu uma carta, no ano passado, a fazer chantagem: se fosse retirado de Canelas tornaria público o caso de abusos sexuais do colega de Fafe. Mas o bispo não esteve com meias medidas: manteve a decisão de o afastar da paróquia – ao abrigo daquilo que diz ser a “rotatividade normal” dos sacerdotes da diocese e que o povo interpreta como uma “vingança” por causa da estátua – e enviou a carta com as supostas acusações para o Ministério Público, que arquivou a denúncia no mês passado, por falta de indícios e por parte dos factos já terem prescrito.

RobertoCarlos nega que algum dia tenha feito chantagem e, num jantar organizado na passada sexta-feira, desafiou o bispo a tornar a carta pública.

Num ponto as duas versões convergem: Roberto Carlos não aceita sair de Canelas. O padre diz que não o fará até que o seu nome esteja “limpo” e o bispo publicou, recentemente, a lista com as nomeações de 2015, onde não consta o nome de Roberto Carlos. O que significa que, na prática, o padre está sem paróquia. Desempregado. Nada que aflija os canelenses.

A UCR!, que já tem mais de 600 sócios registados, está à procura de uma sede e a preparar “várias iniciativas de âmbito social, cultural e humanitário”. “O padre Roberto terá na nossa sede um espaço e será convidado a presidir a todas as celebrações que organizarmos”, promete Miguel Rangel. Não seria mais fácil e pacificador deixar o assunto cair por terra e deixar Roberto assumir uma outra paróquia? A UCR! rejeita essa hipótese: “Canelas não quer fazer parte de uma história de injustiça”.