A kiss is just a kiss


A memória é curta, e é pena que esta amnésia leve a uma sobranceria de que nos arrependeremos, mais cedo ou mais tarde.


© Santi Palacios/AP

Tenho lido alguns textos de colunistas e de políticos sobre os migrantes (sobretudo imigrantes) que me “fazem espécie”, como diria a minha avó.

As políticas mundiais, quando precipitadas, inconsequentes e incoerentes, deram no que deram, entre as quais apoiar e fomentar “Primaveras árabes” e liquidar ditadores que, se lá o estavam, eram por apoio directo e muito activo das potências ocidentais (talibãs, Kadhafi, etc.), pensando simultaneamente que a imposição da democracia representativa com parlamentos assépticos seria aceite de imediato, ignorando (qualquer estudante chumbaria o ano, se fizesse o mesmo!) as composições etnológicas e religiosas, a história antropológica e cultural, os equilíbrios de forças e os costumes das populações locais – e, claro, com o factor D, leia-se “dinheiro”, a comandar as operações, entre empresas que exploram petróleo e recursos naturais, vendem armas ou promovem reconstruções do “pós-guerra”. Não nos armemos, pois, em ingénuos santinhos ou em optimistas deslumbrados.

O que queria sublinhar nestas linhas é diferente. Prende-se com o filme “Casablanca”, que ainda há escassas semanas passou num dos canais de televisão. É verdade… que nostalgia, não é, leitor? Comovente. Torcemos pelos protagonistas e levantamo-nos instintivamente do sofá, num impulso arrebatador, quando o herói húngaro, Victor Laszlo (não o do quarteto), ordena à orquestra que toque “A Marselhesa”, impondo-se pelos decibéis aos sonoros cânticos nazis.

A frase “A kiss is just a kiss” perdurará na memória de quem viu o filme, mesmo que alguns confundam o verso “a man must have his mate” com “a man must have his maid”… e ainda há o “play it again, Sam”, que ficou para a História sem nunca ter sido proferido!

Durante o regime nazi, milhões de europeus fugiram da morte. Judeus (nunca será demais evocar Aristides de Sousa Mendes e o que fez), ciganos, negros, homossexuais, resistentes de França e de outros países, gregos… com o apoio da força moral e bélica dos russos, americanos e, sobretudo, dos britânicos.

Centenas de milhares de pessoas fugiram à morte, a perseguições, a massacres. Fugiram do continente europeu onde apenas tinham como presente (já nem digo futuro!) a morte, a fome, a guerra e a miséria, e fugiram para África e para Lisboa. Chegavam a qualquer local onde um visto, uma carta, um bilhete – mesmo vendendo as jóias, os escassos bens, os dentes de ouro – pudesse ser obtido para chegar a porto seguro.

Os africanos não vedaram portas. Não consta que tenham erguido barreiras de arame farpado nem erigido muros – em Berlim, sim!, mas anos mais tarde, por imposição do regime soviético com a cumplicidade de alguns (muitos) alemães –, nem evitado dar apoio àqueles que, se tivessem ficado nos seus locais de origem, teriam sido exterminados, torturados, enviados para campos de concentração que eram o que sabemos. Que são hoje o que sabemos na Líbia, Arábia Saudita, Iémen, Síria, Irão, Iraque, Sudão, Burundi… em tantos lados que já se torna fastidioso enumerá-los ou em qualquer lado onde impera o Daesh.

Passadas sete décadas, os europeus, que combateram, resistiram, fugiram, e os alemães, que só cresceram porque o Plano Marshall os apoiou depois de terem quase destruído um continente inteiro, esqueceram-se destes “pequenos” factos. Os imigrantes que vêm de barco, às carradas, explorados por traficantes de promessas, que morrem às centenas no Mediterrâneo (mare nostrum… mar nosso e também deles, mas o que a gente quer é, como dizem os brasileiros, tirar o corpo fora), são vistos (David Cameron dixit) como “uma praga”.

Que se levante a voz de um perseguido, judeu ou não, e diga: comigo, teria sido a morte se os africanos do Magrebe não me tivessem acolhido. Devo-lhes isso e devo eternamente abrir-lhes a porta do meu país. “The Germans wore gray, you wore blue.”

Não basta comovermo-nos com o “Casablanca” e com o charme de Humphrey Bogart e a beleza de Ingrid Bergman. A kiss is just a kiss, mas uma estalada é muito, mas mesmo muito mais do que uma estalada. E estamos todos os dias a dá-las a quem apenas pretende manter-se vivo, como os europeus perseguidos dos anos 30 e 40.

Pediatra
Escreve à terça-feira 

A kiss is just a kiss


A memória é curta, e é pena que esta amnésia leve a uma sobranceria de que nos arrependeremos, mais cedo ou mais tarde.


© Santi Palacios/AP

Tenho lido alguns textos de colunistas e de políticos sobre os migrantes (sobretudo imigrantes) que me “fazem espécie”, como diria a minha avó.

As políticas mundiais, quando precipitadas, inconsequentes e incoerentes, deram no que deram, entre as quais apoiar e fomentar “Primaveras árabes” e liquidar ditadores que, se lá o estavam, eram por apoio directo e muito activo das potências ocidentais (talibãs, Kadhafi, etc.), pensando simultaneamente que a imposição da democracia representativa com parlamentos assépticos seria aceite de imediato, ignorando (qualquer estudante chumbaria o ano, se fizesse o mesmo!) as composições etnológicas e religiosas, a história antropológica e cultural, os equilíbrios de forças e os costumes das populações locais – e, claro, com o factor D, leia-se “dinheiro”, a comandar as operações, entre empresas que exploram petróleo e recursos naturais, vendem armas ou promovem reconstruções do “pós-guerra”. Não nos armemos, pois, em ingénuos santinhos ou em optimistas deslumbrados.

O que queria sublinhar nestas linhas é diferente. Prende-se com o filme “Casablanca”, que ainda há escassas semanas passou num dos canais de televisão. É verdade… que nostalgia, não é, leitor? Comovente. Torcemos pelos protagonistas e levantamo-nos instintivamente do sofá, num impulso arrebatador, quando o herói húngaro, Victor Laszlo (não o do quarteto), ordena à orquestra que toque “A Marselhesa”, impondo-se pelos decibéis aos sonoros cânticos nazis.

A frase “A kiss is just a kiss” perdurará na memória de quem viu o filme, mesmo que alguns confundam o verso “a man must have his mate” com “a man must have his maid”… e ainda há o “play it again, Sam”, que ficou para a História sem nunca ter sido proferido!

Durante o regime nazi, milhões de europeus fugiram da morte. Judeus (nunca será demais evocar Aristides de Sousa Mendes e o que fez), ciganos, negros, homossexuais, resistentes de França e de outros países, gregos… com o apoio da força moral e bélica dos russos, americanos e, sobretudo, dos britânicos.

Centenas de milhares de pessoas fugiram à morte, a perseguições, a massacres. Fugiram do continente europeu onde apenas tinham como presente (já nem digo futuro!) a morte, a fome, a guerra e a miséria, e fugiram para África e para Lisboa. Chegavam a qualquer local onde um visto, uma carta, um bilhete – mesmo vendendo as jóias, os escassos bens, os dentes de ouro – pudesse ser obtido para chegar a porto seguro.

Os africanos não vedaram portas. Não consta que tenham erguido barreiras de arame farpado nem erigido muros – em Berlim, sim!, mas anos mais tarde, por imposição do regime soviético com a cumplicidade de alguns (muitos) alemães –, nem evitado dar apoio àqueles que, se tivessem ficado nos seus locais de origem, teriam sido exterminados, torturados, enviados para campos de concentração que eram o que sabemos. Que são hoje o que sabemos na Líbia, Arábia Saudita, Iémen, Síria, Irão, Iraque, Sudão, Burundi… em tantos lados que já se torna fastidioso enumerá-los ou em qualquer lado onde impera o Daesh.

Passadas sete décadas, os europeus, que combateram, resistiram, fugiram, e os alemães, que só cresceram porque o Plano Marshall os apoiou depois de terem quase destruído um continente inteiro, esqueceram-se destes “pequenos” factos. Os imigrantes que vêm de barco, às carradas, explorados por traficantes de promessas, que morrem às centenas no Mediterrâneo (mare nostrum… mar nosso e também deles, mas o que a gente quer é, como dizem os brasileiros, tirar o corpo fora), são vistos (David Cameron dixit) como “uma praga”.

Que se levante a voz de um perseguido, judeu ou não, e diga: comigo, teria sido a morte se os africanos do Magrebe não me tivessem acolhido. Devo-lhes isso e devo eternamente abrir-lhes a porta do meu país. “The Germans wore gray, you wore blue.”

Não basta comovermo-nos com o “Casablanca” e com o charme de Humphrey Bogart e a beleza de Ingrid Bergman. A kiss is just a kiss, mas uma estalada é muito, mas mesmo muito mais do que uma estalada. E estamos todos os dias a dá-las a quem apenas pretende manter-se vivo, como os europeus perseguidos dos anos 30 e 40.

Pediatra
Escreve à terça-feira