Hélia Correia (HC) era uma autora discreta da literatura portuguesa até que o seu telefone tocou anunciando que ganhara o prémio Camões. Isto ocorreu numa altura em que estava, segundo a própria, no máximo do seu isolamento.
Há desde logo esta primeira ideia que confirma um estágio de solidão ou “infelicidade” comum a alguns escritores. Depois há “Bastardia” (2005), que li antes do anúncio do prémio. Este é um livro que, de uma forma ou de outra, nos ataca por todos os lados: pela personagem principal, Moisés, que sentia uma “estranha comoção que transtornava os tios” tocado por uma ansiedade que, pela ausência de um objeto indefinido, é horrível; pelo vocabulário áspero e cruel que a autora imprime ao longo de todo o texto reflexo do ambiente que descreve de vidas que se vão costurando enquanto o amor anda a par com a dor; e também pela súbita memória, violenta, de sair da terra que nos viu nascer.
Mas HC saiu do seu isolamento para receber o prémio Camões, que dedicou à Grécia. Pouco depois foi convidada a participar numa sessão pública de solidariedade com a Grécia em que dissertou redonda e nervosamente, inflamada pelos seus colegas de colóquio (Francisco Louçã, Pacheco Pereira, Mariza Matias, Manuel Alegre, et al), comparando mesmo a “ditadura da economia e das finanças” em que alegadamente vivemos aos tempos de… Salazar!
Tudo isto para dizer que a ambiguidade do autor e da obra, sobretudo na ressonância equivocada que pode ter em nós, é extraordinária. Haverá diferenças entre um autor de direita e um de esquerda? Poderemos dividir a qualidade artística do escritor nestes termos? E a Humana será divisível? O escritor também é pessoa e, por isso, complexo e contraditório. Também por isso, irredutível às suas convicções ideológicas.