Há dezasseis semanas consecutivas que repete o percurso Torres-Vedras – Lisboa – Torres-Vedras diariamente. Houve apenas uma pequena alteração nas últimas três: deixou de parar à porta da sede do Novo Banco, na Avenida da Liberdaed, e agora só estaciona junto ao Banco de Portugal (BdP), na Rua do Ouro. Todos os dias, das 6h às 15h, é possível vê-lo ao lado de dois caixões e uma dezena de cartazes, à porta do banco central.
Paulo Ramos é um dos 800 inscritos na Associação de Lesados do Papel Comercial do BES, mas garante que começou as vigílias por mote próprio. “Não vou largar a porta até às últimas consequências”, garante ao i este antigo trabalhador do sector da construção civil que perdeu “as poupanças de uma vida” com a derrocada do Grupo Espírito Santo (GES), no Verão passado. O dinheiro estava investido em papel comercial do GES, mas na verdade a família toda acreditava que as poupanças estavam seguras “em depósitos a prazo e com capital garantido. Foi isso que pedi ao BES”, no balcão onde tinha as contas. “Nem foi o meu gestor de conta, foi o empregado de balcão” quem tratou de tudo. O contrato, que guarda em casa, “só tem uma assinatura. Foi tudo falseado”, explica. Quando pediu, já ao Novo Banco, uma segunda via do contrato, “já vinha com as duas assinaturas” obrigatórias.
Assim que perdeu as poupanças, perdeu também as condições para trabalhar. “Não tenho condições físicas nem psicológicas. A minha mulher está desempregada e tenho duas filhas estudantes a meu cargo”, diz. “Mas ainda tenho esperança. Quando essa esperança desaparecer, terei medo de mim”, avisa.
Os caixões, que todos os dias tira da sua carrinha e coloca à porta do BdP, são para lembrar “os dois colegas da Associação de Lesados” que se mataram depois de terem perdido tudo quanto tinham. “Não aguentaram a pressão. Os caixões são um símbolo do que nos está a acontecer”, conta. “Um símbolo do sofrimento por que estamos a passar.”
Banco de Portugal veta opções
Paulo Ramos tem licença da Câmara Municipal de Lisboa para estar ali em manifestação, e não faz questão de abandonar aquela rua, que também já começa a ser sua, tão cedo. Confirma que tanto a CMVM como o Novo Banco já tentaram encontrar algumas soluções para os lesados do papel comercial, mas “é sempre tudo rejeitado pelo senhor governador. Senhor não, não lhe chamo senhor.Chamo-lhe só governador”. Foi, aliás, essa a razão por que mudou a localização dos seus protestos – no entanto, a porta do Novo Banco ficou entregue “à Anabela, outra lesada do BES que começou nisto” com Paulo Ramos no final de Abril. “A conclusão a que estamos a chegar é a de que o governador [Carlos Costa] é que nos está a tramar.” E deixa um aviso aos responsáveis das várias instituições. “Há pessoas que estão desesperadas, e que são capazes de tudo. Estão capazes do inimaginável”, sublinha.
Lamenta nunca ter tido uma palavra de quem quer que seja por parte do Banco de Portugal desde que ali está, e que todos os dias passam por ele. “As pessoas que passam na rua é que me mandam mensagens de força, e dizem para não desistir. Algumas até começam a chamar nomes aos responsáveis. Nomes que não posso dizer, compreende?”.
Depois conta ao i mais um pouco da sua própria história. “Sofri tanto para conseguir amealhar, privei-me de imensas coisas: de passar férias, de almoçar fora…” Apresentou queixa-crime contra o empregado do BES que lhe vendeu papel comercial do GES ao invés de um depósito a prazo, como tinha pedido, e todos os meses vê no papel a quantidade de dinheiro amealhado no qual não pode actualmente mexer. “O valor aparece no extracto da minha conta. Só que quando vou ao banco para o levantar, dizem-me que o Banco de Portugal não deixa.”
Há umas semanas teve um encontro imediato com Eduardo Stock da Cunha, o presidente do Novo Banco, que se dirigiu a Paulo Ramos e lhe tirou todos os cartazes que tinham o seu nome, enquanto ele estava de vigília à porta da sede da instituição. “Disse-lhe para ele se demitir. Ele disse-me que não se podia demitir e ainda disse que não tínhamos ideia dos prejuízos que estávamos a causar à instituição por estarmos ali todos os dias.” Para Paulo Ramos, a solução é clara: “Dêem-nos o nosso dinheiro que nós deixamos de aparecer.”
Inquéritos em curso
Actualmente estão em curso cinco inquéritos na Procuradoria Geral da República (PGR), relacionados com o universo Espírito Santo, sendo que têm 73 inquéritos apensos. Todos esses inquéritos “respeitam a queixas apresentadas por pessoas que se consideram lesadas pela actividade desenvolvida pelo BES e pelo GES”, explicava a PGR no comunicado enviado no mesmo dia em que se soube que Ricardo Salgado tinha sido constituído arguido no caso BES. As autoridades fizeram várias buscas e arrestos relacionados com o processo. Os arrestos preventivos, de imóveis e posteriormente de vários bens e contas bancárias de antigos administradores do banco, foram justificados pela PGR com a necessidade de salvaguardar quaisquer indemnizações que possam ser decididas em tribunal.
Estima-se que os 2508 clientes que subscreveram papel comercial do GES tenham a receber cerca de 550 milhões de euros. No final de 2013, o investimento dos clientes do banco em papel comercial chegava aos 1720 milhões de euros. Este produto não tinha tomada firme nem garantia de reembolso por parte do banco. O papel comercial da Espírito Santo International (ESI) era o mais representativo, com mais de mil milhões de euros subscritos.
Os antigos administradores do BES têm negado que a informação sobre os riscos deste investimento não tenham chegado aos clientes, garantindo que toda a informação constava dos contratos que eram dados a assinar. A questão do papel comercial está em discussão desde a resolução do BES, sem que os reguladores consigam chegar a um consenso sobre quem tem responsabilidades sobre o produto. O BdP e o Novo Banco garantem que o papel comercial é responsabilidade do banco mau, o BES, enquanto a CMVM e os advogados dos lesados do papel comercial afirmam que o ónus está do lado do Novo Banco, que está em processo de venda e deverá ser alienado durante o Verão.