Café Central. As longas horas da Longueira

Café Central. As longas horas da Longueira


A terra dos Gonçalves e dos Patrícios é conhecida pelos percebes. No Café Central percebe-se mesmo é de cartas e carolino, um jogo que pode dar dores de costas.


A caminho da praia de Almograve uma placa avisa que estamos quase a chegar àquela que nos venderam como a capital dos percebes. Percebes ou perceves? Escreve-se das duas maneiras e começamos a não perceber nada disto.

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O que é certo é que um tupperware de percebes trazido no dia anterior do Josué, uma das duas marisqueiras da mesma rua (que praticamente é o único caminho na Longueira a que podemos chamar rua), anuncia um Café Central lá para aquelas bandas e a nossa obsessão por estabelecimentos do género levou-nos a estacionar mesmo à porta.
Não que na Longueira haja problemas de estacionamento.

Aliás, talvez na Longueira o problema seja haver demasiado espaço para estacionar. Por outras palavras, e sem nos alongarmos, na Longueira não se passa mesmo nada. “De vez em quando há aqui uns bailaricos”, diz Paula Gonçalves, 45 anos, a dona do Café Central. “Mesmo assim a vizinhança queixa-se. As pessoas vêm aqui para o sossego, só que, quer dizer, também não estamos mortos.”

ATÉ O LIDL ESGOTOU 

Ninguém está morto e a terra até começa a ganhar vida com a aproximação do festival Sudoeste, ali perto, na Zambujeira do Mar. “Todas as terras nos arredores se transformam”, confirma Jorge, com um café na mão, que ainda se lembra do primeiro Sudoeste, em 1997. “Ninguém estava preparado. Foi muita confusão, muito movimento, até o Lidl esgotou porque não havia capacidade. Agora é diferente, o festival até tem um Intermarché lá dentro.”

Mesmo assim “a malta jovem” ainda procura o Café Central nessa altura, “para beber café ou comprar águas a caminho da praia”, conta Paula. Tem de fazer contas de cabeça quando lhe perguntamos quantos anos tem o café: “Ora o meu filho tem 23, por isso o café tem 22”, conclui. Em Milfontes, a poucos quilómetros, o irmão de Paula gere outro café, a Pastelaria Rego, esse sim aberto há mais tempo, num terreno que era dos avós.

Aliás, foi aí que Paula, nascida perto de Joanesburgo, na África do Sul, viria a conhecer o marido. A tal rua com aspecto mesmo de rua de que falávamos é a José António Gonçalves, onde fica o café e praticamente tudo o que pertence ao império dos Gonçalves. “Toda a gente aqui é Gonçalves”, resume Paula – e ela própria acabou por ganhar esse apelido do marido.

O AVÔ DESTA CAMBADA

Quem baptizou a rua foi o pai da sogra, “que é avô desta cambada quase toda”. Um bom exercício para passar as horas longas na Longueira é perguntar o apelido a quem for avistando – e as informações oficiais de 2011 falam em 1356 habitantes. Se forem da terra são Gonçalves. “Ou Patrícios. Era Patrícios de um lado da rua, Gonçalves da outra.” Ainda assim ponha as fichas nos Gonçalves.

Mesmo as duas marisqueiras, o Josué e o João da Longueira, que põem a terra no mapa em alturas de roteiro de petiscos, podiam dar azo a rivalidades. “Nada disso, faz tudo parte da mesma família”, esclarece Paula. “Tanto nos Patrícios como nos Gonçalves, qualquer das mulheres sabia cozinhar bem e por isso montaram vários restaurantes. Excepto a minha sogra, que tinha as costas quentes porque sabia que eu já tinha um café e percebia disto e decidiu abrir este.”

Neste Café Central não há percebes nem caracóis nem nada que se pareça. Quando muito umas batatas fritas de pacote. Mas também não temos fome. Há minis, médias e cafés (o combustível de quem por ali joga às cartas) e o preço da maior parte das coisas é combinado entre os comerciantes da rua – que tem duas mercearias, duas marisqueiras e pouco mais. “Quando queremos aumentar alguma coisa perguntamos o que os outros acham”, conta Paula.

A meia dúzia de clientes além de nós só presta atenção ao jogo de cartas e nem se apercebe da conversa – se calhar nem da subida de preços que acontece de vez em quando. Além das cartas, a única atracção é a TV e uma máquina de setas, a mais recente aquisição da casa. “Mas isso é mais para o Inverno. A partir das cinco vem para aqui tudo jogar. Agora ao fim da tarde a malta vai regar, tratar dos bichinhos, dos porcos e das galinhas, e não vem tanto para aqui.”

CAROLINO NÃO É ARROZ

Por enquanto não temos porcos nem galinhas, mas também já se vai fazendo tarde e não há mais conversa de café. “Espere lá, já conhece o carolino?”, trava-nos Paula quase à saída. Nada de arroz, estamos a falar de um jogo com uma tábua de madeira e um tapete que se estende ao longo do café e por momentos toda a gente desvia a atenção do baralho. “Ó Ti Augusto, venha aqui ensinar a jogar.”

O auto-intitulado ex-campeão Augusto levanta-se a custo de uma cadeira para ver se ainda sabe a técnica. O jogo consiste em tentar acertar com moedas em buracos de uma tábua de madeira e cada um deles tem pontos. Dito assim parece fácil, mas à primeira tentativa a moeda voa e nem na tábua acerta. O Tio Augusto dá-nos um baile tão grande que passamos as longas horas da Longueira curvados a apanhar moedas. Uma canseira.

 

Café Central de Longueira

Ano: Se o filho tem 23, o café tem 22. Isso obriga-nos a usar a calculadora. Paramos em 1993.
Donos: Paula Rego Gonçalves (o Gonçalves é da parte do marido)
Especialidade: Carolino – e não, não é um arroz, é um jogo tradicional com moedas e uma tábua de madeira.
Preço do café: 0,60€
Preço da imperial: Minis a 0,75€, médias a 1€ (o preço é combinado na rua)
Clube de futebol do dono: Benfica, e um carinho especial pelo Vitória de Setúbal.