Santa Cruz. As voltas da vida do homem que criou as melhores bolas de Berlim

Santa Cruz. As voltas da vida do homem que criou as melhores bolas de Berlim


Só à terceira conseguiu comprar o Central, que passou há dois anos à nora. O sonho de menino era ser ciclista profissional e fazer o Tour, mas apaixonou-se. As suas bolas de Berlim são um sucesso. Até Marcelo já lhe deu os parabéns. 


Marcelo Rebelo de Sousa entra porta dentro e apanha Paulino desprevenido. “Vim dar-lhe os parabéns”, começa. “Sim, sou eu, o professor Marcelo. Corre o rumor em toda a Lisboa que não há melhores bolas de Berlim que as suas.” O esmorizense radicado em Santa Cruz desde 1980 sorri a lembrar o episódio. Foi o elogio mais importante que recebeu mas, se é de natureza humilde, no que toca aos bolos nem por isso.

{relacionados}

Acredita que ninguém tem uma receita tão boa como a das suas bolas de Berlim, que mistura segredos da Alemanha, onde esteve emigrado, e nacionais. Chegou a fornecer os cafés todos da terra, mas agora vende-as apenas na sua Pastelaria Santa Cruz, à entrada da vila, enquanto a nora segue a “receita Paulino” no Central.

Paulino Ribeiro Ferreira tem 80 anos e todos os dias vai trabalhar às 6 da manhã. Continua a ser o rosto do Café Central de Santa Cruz, embora há dois anos tenha passado o negócio à nora. Dele são ainda dois outros cafés na vila balnear do concelho de Torres Vedras, mais a retrosaria e a casa de chaves. Neste momento só está na Pastelaria Santa Cruz – fechou o Café Veneza para não fazer concorrência à nora. É só mais uma fase na vida que mais tarde ou mais cedo se há-de resolver, já que tem a pastelaria com garagem e apartamento por cima à venda por 250 mil euros. 

Recusamos a oferta imobiliária (e ele bem insiste que ficávamos bem instalados e com alvará para fazer gelados), mas aceitamos ouvir a história. E bem que é preciso fôlego. Nasceu em Esmoriz, mas no fim da II Guerra o pai mudou–se para Paiol, perto de Alenquer, onde teve uma oficina de carpintaria. “Eu vinha da escola e tinha de cortar as madeirinhas. Queria ir brincar, mas o meu pai dizia ‘só depois’. Quando acabava, já era noite.” 

Com nove anos, Paulino já corria as quintas da zona Oeste à procura de trabalho. Metia-se na bicicleta e andava o que fosse preciso para trazer alguma coisa para casa. Começou então a sonhar ser ciclista e ganhava as provas todas das redondezas. “Até queria fazer a Volta à França, mas não consegui.” Claro que não foi por falta de genica: “É que tomei conhecimento da minha mulher”, justifica em tom grave. Um dia, depois de vencer uma prova na Carvoeira, deixou–se ficar para o bailarico, com as raparigas todas interessadas nele. Entre elas estava a futura mulher. “Até tenho vergonha: casámos ela ainda não tinha 15 e eu não tinha 19.”

Homem de compromissos, arrumou a bicicleta e dedicou-se ao trabalho. Como na oficina do pai só conseguia tirar 200 escudos por mês, foi pedir trabalho a Abel da Fonseca, na altura à frente de um pequeno império vinícola no Oeste. 

Começou por trabalhar nas oficinas por 45 escudos diários, mas queria por tudo fazer uma casa para a mulher e assim não iam longe. “Como os choferes ganhavam 89 escudos por dia, fui pedir ao gerente e ele mandou-me tirar a carta.” Despachou-se em dez lições e passou a trabalhar na distribuição do que era na altura um negócio rentável: a Abel da Fonseca tinha comprado a Val do Rio e fazia vinho com menos gradação alcoólica, misturando água do poço e aguardente nas pipas. Paulino ainda lembra o slogan com que corria o país: “Vinho e água lotado dá bom resultado.” 

Foi, contudo, nessas voltas que percebeu que não podia ficar por ali. “Ouvia falar de pessoas que iam para a Alemanha e faziam uma casa ao fim de dois anos, e eu nada.” Foi dizer ao gerente que se ia embora e ele ainda lhe ofereceu mais cinco escudos por dia… desde que não contasse a ninguém. Aguentou–se uns meses mas acabou por rumar a Cawl, perto de Estugarda. Empregou-se numa firma de construção e à noite e fim-de-semana fazia turnos na fábrica da Mercedes, onde lhe gabavam o perfeccionismo das mãos de carpinteiro. 

Como só havia dois portugueses na terra, empenhou-se em aprender alemão. “Todos os dias escrevia dez palavras numa folha e foi um instante.” A partir daí passou a ajudar todos os que chegavam. “Orientei mais de uma centena.” E foi um desses emigrantes que um dia lhe perguntou se queria comprar um terreno seu em Santa Cruz. 

Dez anos depois de partir para a Alemanha, Paulino construía a sua casa em Portugal, com vista para o mar. “Era tudo diferente aqui: havia só montes de areia e camarinhas, bolinhas brancas que eram como um oásis do deserto”, diz Paulino, lembrando as apetitosas bagas de um arbusto comum na região. Regressaria de vez em 1980. “Fiz mal: pedi a devolução dos descontos e trouxe o dinheiro todo para Portugal”, recorda. Ao início puseram-no a render nas obrigações do Tesouro, mas quando o Estado baixou os juros decidiu investir. 

E foi aí que começou a saga do café. Só à terceira conseguiu ficar com o espaço do Central. Da primeira vez, quando deu por ela estava vendido há duas semanas. Entrou então em despique com um homem da terra, a ver quem abriria o primeiro. Ganhou Paulino, que abriu em 1982 o Café Veneza, mesmo ao lado do futuro Central, depois de passar um mês a esculpir o tecto em madeira. O Central abriria em 1984. 

Mais tarde, o concorrente decidiu vender o café e Paulino também foi apanhado na curva: ainda lhe ofereceu mais mil contos, mas um casal das Caldas já tinha dado o sinal. Só quando a coisa não lhes correu bem e decidiram vender o café é que o Central passou para a família Ferreira. Pelo Veneza, Paulino tinha pago 60 mil contos; pelo Central, 80 mil. “Ao início, quando abri o Veneza, até chorei: tinha posto ali o dinheiro todo e aquilo não dava nada. Mais tarde tive uma empregada que tinha trabalhado para uma família de Torres com uma ourivesaria e ela brincava que dava mais que o ouro.”

Paulino tirou cinco cursos para aprender a fazer gelados e inventou as suas bolas de Berlim, que trazem muita freguesia. Nas voltas da vida, a maior tristeza foi ter pedido um dos filhos. Também gostava da bicicleta e foi atropelado há dez anos, deixando a mulher e os dois filhos, a quem Paulino entregou o Central. Quer continuar a trabalhar, mas gostava de ir ajudá-los e é por isso que pretende fechar a Pastelaria Santa Cruz. Sabe que há-de “tombar” por ali, mas não conhece outra forma de vida. “O meu pai ensinou-me bem. Dizia sempre que é do trabalho que nasce tudo.”