As promessas eram muitas mas a barragem do Alqueva, concluída em 2002, ainda está longe de ter revitalizado as Terras do Grande Lago. Passa já da hora do almoço no café Central de Reguengos de Monsaraz, também restaurante, e António Manuel Natário tem um cliente a beber uma cerveja numa das mesas altas. E serviu uma refeição. “Como é que isto está? Na falência.”
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O cenário é semelhante noutras casas da cidade, antes chamada Reguengos do Alentejo, lembra uma fotografia antiga no salão do Central. Tó Manel, como é conhecido o proprietário, não está com espírito para muitas conversas mas faz uma visita guiada ao estabelecimento inaugurado em 1877, o que faz dele provavelmente um dos cafés centrais em funcionamento há mais tempo no país.
Chegou até si depois de ter pertencido a um tio da mãe e, através das imagens, viaja-se para um cenário bem diferente daquele que se encontra hoje: ao Central vinha toda a gente da terra, o médico, o juiz, o taxista e os senhores da Herdade do Esporão, que continua a ser a coqueluche da zona. E os empregados, miúdos nas fotografias, usavam farda.
Se o glamour desse tempo passou, o espaço preserva mesas e cadeiras e também a configuração. Terá sido à época um investimento considerável: a planta é do arquitecto António José Dias da Silva, que ainda antes do virar do século XIX deixaria marca na capital com a construção do Campo Pequeno. Em Reguenos é também da sua autoria a imponente igreja matriz, financiada por uma doação de 14 contos de reis do político e latifundiário Manuel Papança (1818-1886) deixou em testamento à paróquia.
Apesar da boa frequência, não era sítio onde os pobres ficassem à porta, lembra Tó Manel. “Houve uma altura em que havia preço do café para ricos, pobres e remediados, a um escudo, 60 tostões e 40 tostões”, diz. Talvez desse jeito hoje, mas como se orientavam? “Eram as próprias pessoas que decidiam”, explica o dono, facilidade que no mundo das declarações de rendimentos seria difícil recriar.
A crise Este ano Reguengos é Cidade Europeia do Vinho, mas nem isso tem trazido mais movimento. “A concorrência também é muita”, diz António, que nasceu ali e para contar tudo o que já viveu no café precisaria de um dia, no máximo. Que é como quem diz volte mais tarde. Mesmo assim, ainda nos dá um pouco do seu tempo. “A economia não está nada a melhorar, é tudo treta. Só no desemprego é que há mais emprego.”
E serve-nos também uma fatia de bolo rançoso, a especialidade da casa, e experiência que muito agradecemos. “Fomos os primeiros a fazê-lo”, diz com uma nesga de orgulho, bem justificado. Por cada três quilos de amêndoa leva 120 gemas de ovo, mais banha, açúcar e gila. Uma bomba. Todas as semanas faz pelo menos um ou dois para ter no café-restaurante e também vendem para fora, a 13 euros o quilo. É Tó Manel que supervisiona a confecção e insiste em que seja tudo caseiro, do ralar da amêndoa aos ovos – não há nada de pacote. “É à antiga como o dono”, brinca a funcionária que mete as mãos na massa.
Chamem-lhe o que quiserem, para António não há muitas conversas. “Isto começou a piorar desde que voltaram as pessoas do Ultramar e passou a haver excesso de pessoal para o trabalho e toda a gente se convenceu de que era rico”, diz. “Agora convenceram-se que são pobres. O que ainda mexe alguma coisa é a vinha, mas os pequenos agricultores recebem pouco e há menos dinheiro para gastar.”
Hoje essa luta entre os pequenos e grandes está de novo latente. Noutro restaurante, em conta e bem cotado no Tripadvisor (mas que também só serviu no dia em que o visitamos dois almoços) ouvimos o lamento de, nos eventos locais, os parceiros serem sempre os mesmos.
Em comum há algum ressentimento, mas no diz que respeito à barragem Tó Manel tem uma opinião um pouco diferente. Pode não ter levado a uma explosão no turismo – este ano a mágoa geral é que o lado português da albufeira continua a não ter uma praia fluvial enquanto os espanhóis já estão a explorar o potencial – mas para Tó Manel, só pode ser vista como uma coisa positiva para a região.
Quando muito, o concelho não a soube a aproveitar e isso é uma coisa diferente. “Há muito mais água. Para os lados de Évora está tudo cheio de tomate e melão. Aqui é que se pensou que só a vinha era importante e que não precisava de água.”
É o velho problema das escolhas mais ou menos acertadas e do resultado das mesmas. “Fiz baptizados, casamentos e caçadas. Recebi aqui todos os presidentes, do Ramalho Eanes ao Jorge Sampaio.” O cardápio inclui especialidades como calduxo – caldo com muito poejo, bacalhau e ovo – e arroz ou ovos com cilarcas, cogumelos selvagens. E sabe colhê-los? “Envenená-los era o que eu devia ter feito a todos”, sorri António.
O resto da história, tem de ficar para outro dia. Isso e os segredos de se ter uma casa aberta tanto tempo, entre outras singularidades deste alentejano, que faz colecção de navalhas e tem mais de 600 na parede do café. Continua a gostar do que faz? “O que acha ao fim de 70 anos?”. Arriscamos num sim. Tem três filhos, mas nenhum quer continuar o negócio. Tó Manel não conta ir a lado nenhum: a reforma vai toda a para pagar um empréstimo no banco. “Corto as unhas dos pés todas as semanas e já não é mau.”