“Era o primeiro verão na Baía depois que eu tinha voltado de Londres, e eu fui à festa de Nossa Senhora da Conceição em Santo Amaro da Purificação. Eu estava na casa onde Canô, mãe de Caetano, estava dando a festa; vendo as pessoas queridas e a alegria que emanava delas, da lembrança da saudade que eu sentia dessas e outras coisas em Londres veio o impulso para escrever a canção – que eu comecei ali, letra e música juntas, de cabeça, e complementei no dia seguinte, já na casa de Sandra, na Graça, em Salvador.”
Assim se escreveu, na primeira pessoa, parte da história da canção “Back in Bahia”, um pedaço de rock que Gilberto Gil criou nos anos 70 e que esta noite foi servido apenas a voz e violão com Caetano Veloso, no arranque do concerto no EDPCoolJazz, em Oeiras. O espectáculo que encerrou o festival faz parte da tournée comemorativa “Caetano & Gil – Dois Amigos, Um Século de Música”, que reúne um reportório com alguns dos maiores êxitos dos 50 anos de carreira destes dois vultos da música brasileira, o que só por si justificaria a afluência ao Estádio Municipal de Oeiras – o concerto esgotou há algum tempo – e explicaria, em grande parte, a capacidade de aguentar estoicamente, tanto do público como da dupla, o frio e o vento que se fariam sentir ao longo da noite, atravessando os ossos e, ocasionalmente, o próprio som do espectáculo.
Quando se apagaram as luzes e Caetano e Gil – o primeiro vestido de preto e o segundo de branco – subiram ao palco ainda havia gente a entrar. Não foi fácil juntar e aquecer o público com um concerto em formato acústico, numa noite fria e num contexto, apesar de tudo, de festival com bebidas e comida a circular e a distrair. Por isso, mesmo com o desfile de êxitos antigos, logo no início, como “Coração Vagabundo”, “Tropicália”, “Marginália II” ou “É de Manhã”, ora partilhados a dois, ora cantados à vez, foi só com “Sampa” que chegaram aplausos e coros mais audíveis, mas ainda assim insuficientes para dispensar o incitamento à cantoria, por parte de Caetano, em “Terra”.
A dupla passear-se-ia novamente pela tropicália e pelos anos 70 em “Nine of Ten”, do disco “Transa” de Caetano Veloso. O cantor protagonizaria a seguir, e sozinho, um dos grandes momentos da noite, numa belíssima versão de “Tonada de Luna Llena”. Também a sós, mas desta vez por Gilberto Gil,"Não tenho medo da morte", quase a capella, apenas com a mão batida contra o violão a dar o ritmo, foi ouvida num silêncio e reverência quase religiosas.
Por essa altura, o vento amainou, como que dando um contributo ao entusiasmo gerado no público, que tinha, enfim, chegado para ficar. Mais animadas "Expresso 2222" – do álbum homónimo de Gil, lançado em 1972, que marca o seu regresso do exílio em Londres e onde se inclui "Back in Bahia" – e "Toda a Menina Baiana" soltaram as vozes da assistência e puseram parte dela a balançar-se. Caetano Veloso aproveitou o embalo e garantiu que os ânimos não esmoreceriam, levantando-se da cadeira e ensaiando também ele uns descontraídos movimentos de dança para o público.
A disposição manteve-se em alta como se as canções tivessem conseguido fazer esquecer o frio, ainda que apenas por alguns momentos. Quase que seguindo o que diz a letra “cantando eu mando a tristeza embora", da canção “Desde que o samba é samba", a primeira do encore e responsável por ofuscar rapidamente aquilo que pareceu ter sido uma imprecisão de geografia por parte de Caetano Veloso quando referiu Santo Amaro de Oeiras em vez de apenas Oeiras. Ou será que foi a lembrança de Santo Amaro da Purificação? Não sabemos.
Sabemos sim que o concerto terminaria com o público a cantar de volta, em coro, o refrão de "A Luz de Tieta" para os dois músicos, fechando em beleza um espectáculo que, noutras circunstâncias, poderia ter tido mais calor, a vários níveis. Apesar disso e de haver quem lamentasse que não se tivessem contado as histórias das canções e dos encontros da dupla ao longo das respectivas carreiras, este é um daqueles raros momentos de reunião a que basta assistir para já ser um privilégio.