Instruções para a diversão


“A vida é curta e a morte infinita.” Pois é. Há quem se esteja a borrifar para isto, quem se deprima, quem tente lutar contra o fim com um plano bem traçado e quem, como eu, oscile entre ficar estendida sob o peso da existência e pairar graças à leviandade da diversão. Mas a verdade…


“A vida é curta e a morte infinita.” Pois é. Há quem se esteja a borrifar para isto, quem se deprima, quem tente lutar contra o fim com um plano bem traçado e quem, como eu, oscile entre ficar estendida sob o peso da existência e pairar graças à leviandade da diversão.

Mas a verdade é que a diversão é muitas vezes sobrevalorizada: malta que só deseja sossego vê-se obrigada pelos seus pares a viver cada momento de lazer como se fosse o último. Essa malta está para a vida social como os empregados do Hard Rock Café estão para a restauração. A alegria forçada deve provocar lesões irreversíveis nos maxilares e na paz de espírito.

Esquecemo-nos de que o lazer de cada um é, de facto, uma questão idiossincrática; por isso, tendemos a julgar os outros. Eu já senti essa arrogância: “Que talento que eu tenho para curtir, caramba.” E julgamos os outros porque curtem demais e são irresponsáveis ou porque curtem de menos e são aborrecidos. A dinâmica de casal costuma espelhar bem estas duas atitudes: há quase sempre um que quer ir para casa dormir e outro que quer acordar numa sarjeta no dia seguinte. Ambos formulam juízos sobre o comportamento do outro, parece inevitável. E digladiam-se para fazer valer o seu ponto de vista. Eu diria que é uma questão bastante simples de resolver, a não ser que só tenham uma cópia da chave de casa. E mesmo assim.

Mas a ideia de diversão não difere apenas de pessoa para pessoa, muda também ao longo da vida. Outro dia, um amigo que não via há tempos dizia–me: “Eu já não saio à noite.” Não, ele não teve filhos nem abraçou uma carreira no ramo da panificação, mas “as pessoas já não são as mesmas”, disse às tantas. Afinal, não era só uma escolha – era também uma desilusão.

Por questões profissionais, vou mudar brevemente o ritmo da minha vida e tenho-me perguntado: tornar-me-ei uma pessoa que “já não é a mesma”? Pode vir a acontecer, de facto, e nada a fazer. Mas o que me preocupa realmente é se viverei confortavelmente essa mudança ou se me verei obrigada a dançar o “YMCA” todas as noites até me doerem os maxilares.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

Instruções para a diversão


“A vida é curta e a morte infinita.” Pois é. Há quem se esteja a borrifar para isto, quem se deprima, quem tente lutar contra o fim com um plano bem traçado e quem, como eu, oscile entre ficar estendida sob o peso da existência e pairar graças à leviandade da diversão. Mas a verdade…


“A vida é curta e a morte infinita.” Pois é. Há quem se esteja a borrifar para isto, quem se deprima, quem tente lutar contra o fim com um plano bem traçado e quem, como eu, oscile entre ficar estendida sob o peso da existência e pairar graças à leviandade da diversão.

Mas a verdade é que a diversão é muitas vezes sobrevalorizada: malta que só deseja sossego vê-se obrigada pelos seus pares a viver cada momento de lazer como se fosse o último. Essa malta está para a vida social como os empregados do Hard Rock Café estão para a restauração. A alegria forçada deve provocar lesões irreversíveis nos maxilares e na paz de espírito.

Esquecemo-nos de que o lazer de cada um é, de facto, uma questão idiossincrática; por isso, tendemos a julgar os outros. Eu já senti essa arrogância: “Que talento que eu tenho para curtir, caramba.” E julgamos os outros porque curtem demais e são irresponsáveis ou porque curtem de menos e são aborrecidos. A dinâmica de casal costuma espelhar bem estas duas atitudes: há quase sempre um que quer ir para casa dormir e outro que quer acordar numa sarjeta no dia seguinte. Ambos formulam juízos sobre o comportamento do outro, parece inevitável. E digladiam-se para fazer valer o seu ponto de vista. Eu diria que é uma questão bastante simples de resolver, a não ser que só tenham uma cópia da chave de casa. E mesmo assim.

Mas a ideia de diversão não difere apenas de pessoa para pessoa, muda também ao longo da vida. Outro dia, um amigo que não via há tempos dizia–me: “Eu já não saio à noite.” Não, ele não teve filhos nem abraçou uma carreira no ramo da panificação, mas “as pessoas já não são as mesmas”, disse às tantas. Afinal, não era só uma escolha – era também uma desilusão.

Por questões profissionais, vou mudar brevemente o ritmo da minha vida e tenho-me perguntado: tornar-me-ei uma pessoa que “já não é a mesma”? Pode vir a acontecer, de facto, e nada a fazer. Mas o que me preocupa realmente é se viverei confortavelmente essa mudança ou se me verei obrigada a dançar o “YMCA” todas as noites até me doerem os maxilares.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado