Assumiu o lugar de maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa, formação residente do Teatro Nacional de São Carlos, em Janeiro de 2014 e reconhece que no último ano e meio nem sempre foi fácil programar sem a figura de um director artístico. Ainda assim, destaca o empenho da equipa em manter a qualidade da programação e regista o seu crescimento, apesar das circunstâncias. Acredita que 2015/2016 não será excepção. A nova temporada, orçada em 1,3 milhões de euros, é feita de clássicos, música portuguesa como a estreia de “Incipit”, de Luís Tinoco, e produções líricas próprias, como a ópera “Dialogues des Carmélites”, de Poulenc, encenada por Luís Miguel Cintra, e “Iphigénie en Tauride”, de Gluck.
Como se organiza uma temporada com estas características?
Constrói-se com alguma antecedência. Há sonhos que vão sendo alimentados, peças que vou pensando que quero dirigir, projectos que gostaria de fazer, artistas e compositores com quem vou falando e criando relações – e vão surgindo projectos assim. Mas foi nos últimos meses que tudo se juntou e que o nosso programador convidado, Patrick Dickie, se juntou a nós. Já tínhamos algumas datas definidas, mas nos últimos dois meses conseguimos concluir tudo.
Há projectos com a Fundação Calouste Gulbenkian e em colaboração com a Orquestra Sinfónica de Berkeley. Como gere tudo isso?
Tento gerir com método, muita vontade, e tenho pessoas muito boas ao meu lado, a nível profissional e pessoal. Não é simples, mas faço-o com alegria e grande sentimento de gratidão por me serem concedidas estas oportunidades.
O último ano tem sido marcado por polémicas no São Carlos: a saída de Paolo Pinamonti e, depois, a contratação de um consultor em vez de um director artístico. É difícil criar uma programação nestas circunstâncias?
Há momentos difíceis, mas este foi um ano de crescimento musical do Teatro São Carlos e dos seus corpos artísticos. Foi uma temporada recheada de coisas boas, feitas de forma excelente e com muito público. Isso foi o mais importante. Ao mesmo tempo começávamos a preparar a próxima temporada e conseguimos fazê-lo com um enorme esforço dos que trabalham na casa e com a vinda do programador Patrick Dickie. É evidente que o que o teatro precisa é de um director artístico permanente, e é essa a solução que vai ter de ser encontrada num curto espaço de tempo, mas não era possível fazê-lo nos últimos dois meses e ter a programação preparada para 2015/2016. Fiquei contente por ouvir a intenção de se abrir um concurso internacional para que a temporada seguinte seja preparada de forma mais serena. Encontrámos uma solução provisória para depois encontrarmos a de que precisamos urgentemente: uma figura permanente que é o director artístico.
Ser maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa obrigou-a a fazer uma redefinição da hierarquia dos projectos?
Sem dúvida. Quando fui convidada foi muito perto do início desse cargo e trabalhando nesta área sabemos que as coisas são programadas com bastante antecedência. Com este novo cargo pude redefinir as minhas prioridades, mas isso teve mais efeito nesta segunda fase da temporada 2014/2015, e mais ainda na próxima temporada porque tive tempo para programar as coisas de outra forma. A minha presença no Teatro São Carlos e junto da orquestra vai ser mais bem distribuída, porque pude reagrupar os concertos, redefinir aquelas que são as minhas prioridades. Mas para mim é maravilhoso, pela relação artística que temos e porque é no meu país. Estou em casa.
Passa mais tempo em Portugal por causa deste cargo?
Sim e não. Obriga a mais tempo efectivo de trabalho quando estou cá, estou sempre a fazer concertos, a ensaiar, o que não acontecia antes, em que o tempo era sobretudo preenchido a estudar e a preparar outros projectos. Agora tenho de encontrar outra forma de distribuir esse tempo. Acresce que aqui também tenho as minhas obrigações familiares, que não posso descurar porque passo tempo fora. Em 2015/2016 vou continuar a trabalhar bastante no estrangeiro com a Orquestra de Berkeley. Vou dirigir muito na Europa, vou à Ásia.
Tem recusado convites?
Mais do que recusar, temos tido que ou adiar ou mudar as datas. É um bocadinho isso que está a acontecer, mas felizmente na minha vida estou a programar com cada vez mais antecedência e isso permite-me manter essas relações. Acontece rejeitar alguns projectos porque ou não é o meu repertório, ou não é o momento certo para os fazer, ou pela calendarização. Houve realmente alguns que tive de recusar, mas a maior parte daqueles para os quais não tinha disponibilidade este ano foram recalendarizados.
De todos os passos que deu desde a sua formação, há algum que tenha sido particularmente determinante para a maestrina que é hoje?
Quando fiz a licenciatura em Direcção de Orquestra, em 1998, fui estudar para fora e comecei logo a ser convidada por orquestras em Portugal: pela Metropolitana, depois pela Gulbenkian e pela Orquestra Sinfónica Portuguesa. O investimento de Portugal, não só através das orquestras, mas também pelo apoio que me deram, de bolsas de estudo que recebi, foi fundamental para o meu desenvolvimento. O outro momento determinante foi ter feito parte da Filarmónica de Los Angeles, e essa foi a minha última grande escola. Foram quatro anos em que fui assistente do maestro Salonen, que até hoje é o meu mentor, e lá aprendi realmente o que é a excelência a todos os níveis: programação, execução, a nível do auditório, do público. Los Angeles é um laboratório musical e a imaginação da orquestra do maestro Salonen realmente determinou muito a forma como imagino os concertos, a minha concepção do que significa ser maestro titular no século XXI, naquilo que é o progresso na música, mas também na relação que uma orquestra tem de ter com a comunidade.
Qual foi a obra mais difícil de dirigir?
Recentemente, diria que a obra mais difícil foi uma ópera do John Adams, chamada “The Gospel According to the Other Mary” (“O Evangelho Segundo a Outra Maria”), que dirigi em Novembro, em Londres. Foi a mais complexa que dirigi do Adams, e faço muita música dele, e a peça mais difícil que alguma vez dirigi. É muito complexa ao nível da narrativa e musicalmente. Tornar isso natural e com um fio condutor foi um grande desafio, mas também a experiência mais importante da minha carreira, de novo com o Peter Sellars, outro dos meus grandes mentores.
Há algum compositor que seja sempre um desafio ou complexo, por mais que se dirija e se conheça?
Desafio é sempre, e tem a ver com a nossa postura, sempre que fazemos uma peça devemos olhá-la com frescura. Mas há compositores que são sempre um grande desafio, como o John Adams, que referi, Stravinsky, Schumann, Brahms, Beethoven…
Qual foi o primeiro disco de música clássica ou compositor que ouviu?
A primeira memória marcante que tenho, da minha adolescência, é a do “West Side Story”, do Leonard Bernstein, a gravação que ele fez com o Carreras, com a Kiri Te Kanawa e a [Tatiana] Troyanos. Passou na televisão e os meus pais gravaram, e vi vezes sem conta. É uma das razões pelas quais faço o que faço hoje e já tinha dito anos antes que queria dirigir uma orquestra quando fosse adulta.
Quando é que disse isso?
Aos nove anos. Mas o “West Side Story”, com aquela beleza e a forma de fazer música do Bernstein, a técnica ao serviço da música, onde o que importava era a expressão musical, foi marcante.
E ouvia o mesmo que os outros adolescentes?
Ouvia, claro. O Bryan Adams, os cantores pop todos. O Elton John sempre foi um grande favorito; os Queen, que marcaram muito os adolescentes no fim dos anos 80, Duran Duran, Pet Shop Boys…
Esses mundos cruzam-se, muitas vezes, com o da música clássica e das orquestras. Enquanto maestrina, gostava de ter esse tipo de experiência?
Sim, porque não? Nunca aconteceu comigo, mas há algumas experiências. Os Metallica gravaram um disco assim, com grande sucesso; o Peter Gabriel, que eu adoro, tem o “Scratch My Back”, gravado com uma orquestra, e é um álbum belíssimo. O “All By Myself”, da Celine Dion, por exemplo, é baseado num concerto para piano de Rachmaninov.
De que gosta mais nesta profissão?
Trabalhar com a orquestra e com os cantores, numa ópera ou num coro. A maior parte do tempo da vida de um maestro é passada sozinho, a preparar as peças e a viajar, mas a beleza da música acontece quando é feita em comunidade, quando finalmente sei como é que a peça soa, se é como imaginei, se vai ao encontro daquilo que penso ser o ideal do compositor. Criar beleza com 100 ou 200 pessoas e, como corolário, poder partilhar isso com um público são as coisas que mais me fazem sentir completa.
No contacto com o público mais novo surgem expressões de surpresa por verem uma maestrina e não um maestro?
Não, pelo contrário. O primeiro concerto que fiz em Los Angeles, como maestrina assistente, foi uma peça do século XXI. E lembro-me que os professores das 2300 crianças que assistiram a esse espectáculo comentaram que a primeira memória sinfónica que vão ter é a de um compositor do século XXI e uma orquestra dirigida por uma mulher. Se cada vez mais crianças virem mulheres a dirigir, não vai existir esse preconceito. Ele existe na minha geração porque não nos habituámos a isso. Da mesma forma, quanto mais música do nosso tempo as crianças ouvirem, menos preconceitos terão em relação à música contemporânea.
O público português vai muito ou pouco ao Teatro São Carlos?
Vai muito. Não tenho os números concretos, mas recentemente, na ópera “Rake’s Progress”, do Stravinsky, tivemos a casa cheia. Este ano voltámos a ter assinaturas, tivemos outras peças que foram sucessos de bilheteira. O nosso público é um público fiel e cada vez cresce mais. Há mais jovens, e público estrangeiro que passa por Lisboa e não deixa de ir ao São Carlos. Este ano ultrapassámos os nossos objectivos de bilheteira e isso quer dizer que o teatro está vivo e o nosso público espera cada vez mais de nós.