Vejo pouca televisão, mas a internet faz o favor de me chamar a atenção para aquilo que realmente interessa – e que, na verdade, não interessa nada – como, por exemplo, os momentos mais vergonhosos da CMTV. O canal, tal como o jornal que está na sua origem, traz à tona o pior do seu público: a cusquice, a curiosidade mórbida e uma série de desculpas esfarrapadas para se julgar os outros e justificar preconceitos injustificáveis.
É um canal muito coerente e espertalhão na sua estratégia porque, tal como um circo romano ou uma feira de aberrações, dá aos seus espectadores exactamente aquilo que eles querem. Mais que isso até, porque eles não têm querer: limitam-se a depositar o seu olhar bovino no ecrã e a enfardar bizarrias disfarçadas de informação que os autorizam a formular juízos reveladores (e orgulhosos) da sua ignorância. Se um canal assim é preciso? Não. Se resulta? Pois claro que sim, olhem para esta grande snobe a falar dele.
Do que eu mais gosto na CMTV é dos momentos em que a verdade supera a mensagem tal como a pretendem fazer passar. Há dias, no programa da manhã apresentado por Maya (a mulher que acredita nos astros) e Nuno Graciano (o homem que acredita em sushi), foi entrevistada Tucha Portugal – além de travesti de profissão, uma mulher de 60 anos num corpo em que nunca se reviu.
Tucha e o marido, Fernando, foram os primeiros a casar depois da legalização do casamento homossexual e foram à CMTV contar a sua história de amor. É uma história pouco convencional que começa numa casa de banho da Estação de Santa Apolónia com Fernando a baixar as calças. É, a certa altura, uma história preocupante por incluir um episódio de violência doméstica. É uma história cómica porque Tucha é uma mulher tipicamente portuguesa, que conta cada momento da sua vida com uma minúcia quase efabulada, tal o esforço para fazer passar a verdade (“era dia tal, à hora tal, íamos comer esparguete com hamburgas, nunca mai me esquece”). É uma história como outra qualquer num qualquer programa da manhã.
A realização deste momento televisivo foca as expressões escandalizadas da plateia, a condescendência de Maya e o incómodo de Nuno Graciano mas, apesar desse esforço, nada é suficientemente persuasivo para reduzir aqueles seres humanos a meras aberrações.
Tal como aconteceu, dias mais tarde, num noticiário do mesmo canal, quando a militante (por acaso) transgénero do Bloco de Esquerda Júlia Pereira se recusou a responder a certas perguntas quando percebeu que não fora convidada para falar de política, mas sim para o jornalista José Carlos Castro a “conhecer melhor”.
Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado