Ian McKellen é Sherlock Holmes em “Mr. Holmes”, o mais recente filme sobre o mais famoso detective da história da literatura, adaptado do livro “Sr. Sherlock Holmes”, de Mitch Cullin, e em exibição nas salas nacionais. A personagem criada por Sir Arthur Conan Doyle no séc. XIX tem sido recuperada ao longo dos tempos por outros escritores e através do cinema.
Porém, no livro de Cullin, publicado há uma década nos Estados Unidos e lançado em Portugal no passado mês de Maio, o Sherlock Holmes retratado está longe da imagem enérgica e jovem, mais recentemente popularizada no universo audiovisual por nomes como Benedict Cumberbatch. Agora é a vez de o público conhecer a versão envelhecida e desmemoriada do detective, mas igualmente empenhada em resolver mistérios. Alguns deles com origens tão insondáveis como as ideias que surgem na escrita de Cullin, como explica o próprio autor.
“Sr. Sherlock Holmes” foi publicado nos Estados Unidos há cerca de dez anos, com o título a “A Slight Trick of the Mind”. Como olha para este romance uma década depois?
Continuo muito orgulhoso do livro. Penso que se aguentou muito bem e permitiu-me explorar temas que permanecem intemporais. E sinto-me também orgulhoso por ter antecipado a popularidade actual da personagem de Sherlock Holmes, por isso acabei por estar à frente na curva com esse romance, em particular.
E porque quis escrever sobre um Sherlock Holmes nonagenário, com lapsos de memória?
Desde criança que sonho criar a minha própria visão de Sherlock Holmes, mas foi só quando o meu pai começou a mostrar sinais de perda de memória que senti a necessidade de explorar a personagem como alguém que seguisse a mesma trajectória que ele. Foi por isso que os temas da memória, e como ela nos define, são parte integral da história, tal como o motivo implícito da perda da figura paterna.
Mas escrever para uma personagem com problemas de memória, especialmente no caso de um detective como Sherlock Holmes, deve trazer desafios adicionais. O que foi mais complicado na sua construção?
A maior luta foi tornar a personagem credível como Sherlock Holmes e, ao mesmo tempo, muito humana, de uma forma que nunca tinha sido propriamente abordada. Foi um percurso ardiloso, mas penso que o consegui o que queria.
É verdade que metade do tempo não sabe bem porque faz certas escolhas quando escreve? Como é o seu processo de escrita?
Sim, isso é muito verdadeiro. Normalmente tenho uma ideia clara sobre os temas que me interessam quando escrevo um livro, mas no que toca à escrita propriamente dita há muito mistério envolvido no processo. Tendo a pensar mais em termos de imagens do que em palavras, por isso há certas coisas que vêm até mim dessa forma, de uma maneira que não conseguiria planear antecipadamente, coisas como ideias surreais, reviravoltas na narrativa. Por isso, começo por um tema e talvez pela ideia de como quero que a história acabe, depois salto da prancha de mergulho metafórica e espero conseguir nadar e não me afogar.
Li que desistiu da faculdade e se mudou para o Arizona para escrever. Na altura queria escrever sobre o quê? E porque é que a faculdade não fazia parte dos seus planos?
Bem, em parte desisti porque não tinha estômago para assistir a aulas nas quais não estava interessado. Também sabia que a licenciatura não era necessariamente um pré-requisito para ser um bom escritor. Mas, fundamentalmente, porque a romancista Mary Gaitskill, que é minha amiga e foi minha professora na altura, me disse que achava que eu não tinha de terminar o curso para começar a escrever. De certa forma, ela ajudou-me a tomar a decisão de ir para o deserto trabalhar em pequenos livros estranhos.
Sempre quis ser escritor?
Na realidade, não. O meu sonho sempre foi ser fotógrafo. Até hoje, a fotografia é a minha grande paixão. Mas por qualquer razão tenho sido mais bem-sucedido como escritor. Se tivesse publicado apenas um romance e depois seguido com sucesso a fotografia, teria ficado muito satisfeito.
Que autores o influenciaram mais?
Há tantos. Assim de repente diria Kenzaburo Oe, Alice Munro, George Orwell, Flannery O’Connor e Kobo Abe. Mas se me perguntasse o mesmo amanhã, a lista facilmente mudaria.
Também tem trabalhado com músicos. Como é que isso aconteceu?
Quando vivi em Tucson tornei-me amigo próximo de músicos de bandas locais, como os Calexico e os Giant Sand, e de pessoas como a Neko Case e o Howe Gelb. A cidade e a sua comunidade musical eram relativamente pequenas, por isso era muito difícil ter contacto com outros artistas. Também penso que, em certa medida, os escritores admiram os músicos porque estes conseguem ter uma reacção imediata do público, enquanto um escritor tem, muitas vezes, de esperar anos até ter feedback dos seus leitores, quando tem. Por outro lado, acho que todos os músicos são, até certo ponto, romancistas frustrados.
Começou nos romances como a trilogia “Texas”. A geografia e o espaço circundantes são uma parte importante da inspiração da sua escrita?
Sem dúvida. Na realidade, em quase todos os meus romances a geografia funciona como uma personagem que existe sob os meus protagonistas. Isso deve-se provavelmente ao facto de ter crescido no Texas e de ter muito presente a sensação de estar no meio do nada, com todo aquele céu por cima de mim.
Tal como “Sr. Sherlock Holmes”, um dos romances dessa trilogia, “Tideland”, foi adaptado ao cinema. Quais foram as principais diferenças no processo de adaptação desses dois livros ao grande ecrã?
O processo foi igual, no sentido em que não interferi na abordagem cinematográfica dos livros. A principal diferença foi, talvez, ter sido regularmente consultado pelo Terry Gilliam [que realizou “Tideland – O Mundo ao Contrário”, de 2005] sobre várias ideias e, claro, por ter feito uma aparição no filme, assim como co--escrito algumas canções que apareceram no filme. O “Mr. Holmes” [filme feito a partir de “Sr. Sherlock Holmes”] passou por vários directores e actores antes de ficar nas mãos de [Bill] Condon e de [Ian] McKellen. Já o “Tideland” sempre foi o filho selvagem e torcido de Gilliam.
O que sente quando vê as suas personagens ganharem vida no cinema?
É tão surreal para mim, especialmente estar na presença do Ian McKellen durante as filmagens e ouvi-lo falar, na casa senhorial onde a rainha Isabel I nasceu, e aperceber-me de que escrevi essas palavras num apartamento em Tucson, no Arizona.
E o que achou da escolha de Ian McKellen para o papel? Ele corresponde à imagem que criou do Sherlock Holmes?
Ele é perfeito. Não podia ter pedido melhor actor para representar o papel. Ian McKellen é o mais perfeito Sherlock Holmes que imaginei.