Crianças, fotos e net – a propósito de um acórdão de tribunal


Uma coisa é tirar uma fotografia da criança e mostrar ao círculo mais próximo de familiares e amigos, outra é colocá-la numa rede social – parece-me que se ultrapassa uma fronteira que é a da intimidade versus domínio público.


Recentemente, um tribunal de Évora pronunciou-se a favor de serem retiradas da internet fotografias de uma criança, filha de um casal separado, colocadas por um dos progenitores e sendo o outro contra.

A primeira questão é que, no caso de os pais não chegarem a consenso, é para isso que os tribunais servem: dirimir conflitos, seja na escolha de escolas, no professar religiões ou na mudança de residência para longe, por exemplo. A intervenção do tribunal não é um drama, pois existe exactamente para resolver litígios deste tipo.

Quanto ao assunto em concreto, a publicação de fotografias na internet, nas redes sociais, cada leitor terá um entendimento da situação e não serei eu quem vai fazer juízos de valor. Apenas irei emitir a minha opinião.

Como em qualquer caso de exposição pública – mais aguda em crianças –, deve responder-se a algumas questões: qual o interesse de publicar? Quem beneficia com isso? Quais os potenciais efeitos colaterais? Faz-se com ligeireza? Terá quem publica a noção de que a fotografia ficará para sempre num servidor, e acessível enquanto online no Facebook ou Instagram? Queremos mostrar a fotografia à família e aos amigos ou aos sete mil milhões de habitantes do planeta?

Qualquer publicação da imagem de uma pessoa sem sentido ou objectivo que não o narcisismo dos pais para mostrar “que pais formidáveis que somos que temos uma criança tão linda” é, quanto a mim, leviana, porque as crianças não são objectos, bonecos de peluche ou troféus de caça. O narcisismo é muito evidente nas redes sociais. Basta ver os posts em que se conta tudo o que se faz, numa necessidade quase compulsiva de se fazer notar, ou muitas fotografias dos perfis e os comentários que estas suscitam: “Que gira!”, “Uau!”, “Estás liiiiinda!”, “És de morrer!”… Dava uma tese de doutoramento, como diria um cínico.

Voltando ao tema, uma coisa é tirar uma fotografia da criança e mostrar ao círculo mais próximo de familiares e amigos, outra é colocá-la numa rede social – parece-me que se ultrapassa uma fronteira que é a da intimidade versus domínio público mas, desde que não sejam fotografias humilhantes ou situações ridículas ou sem pudor, também não façamos disso um drama.

Quanto ao ciberbullying, há relato do seu número crescente, com o impacte enorme que tem pela universalização da chacota e da agressão, mas a colocação não é feita pelos pais. Contudo, o fenómeno não é novo e quem não se recorda do mau gosto daqueles programas dos anos 80 e 90 do século XX, com vídeos em que se viam miúdos a cair ou em figuras patéticas, só para gáudio dos pais, risota geral e audiências dos canais de televisão, que assim conseguiam programas gratuitos sem qualquer investimento de produção? Não sejamos hipócritas ou fundamentalistas, higienistas ou puritanos, mas apenas prudentes e respeitadores dos direitos e interesses das crianças.

Finalmente, há o receio generalizado de que a internet seja um local de “caça” para pedófilos, o que é tanto verdade como os bancos de jardim em frente das escolas. E por isso é preciso ter os cuidados e a atitude preventiva que passa, por exemplo, por limitar acessos e não autorizar páginas de redes sociais a crianças… ou até telemóveis. Não esqueçamos também que os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual das crianças podem ou não ser praticados por pedófilos – e a pedofilia não é crime, mas a isso voltaremos – e não esqueçamos que mais de 80% dos crimes sexuais sobre crianças são cometidos em casa, por pais, padrastos, vizinhos, conhecidos – estes não precisam da internet para os seus actos. Pensar que na internet é que estão “os bandidos” é branquear o local onde a maioria deles se esconde: a casa, a escola e os círculos mais próximos e menos cibernáuticos…

P.S.: A propósito do artigo sobre a “água Torneirex” recebi uma extensa carta, esclarecedora e amável, do secretário-geral da APIAM, dando conta dos esforços que estão fazendo para reduzir o desperdício, melhorar a qualidade e promover a reciclagem, tendo já retirado o bisfenol A das garrafas de plástico. Agradeço o esclarecimento e o tom cortês. Mesmo continuando a ser adepto da água da torneira, aprendi algumas coisas sobre o que se tem feito neste campo e, do mesmo modo, como se pode debater assuntos de modo civilizado e com respeito mútuo.

Pediatra
Escreve à terça-feira 

Crianças, fotos e net – a propósito de um acórdão de tribunal


Uma coisa é tirar uma fotografia da criança e mostrar ao círculo mais próximo de familiares e amigos, outra é colocá-la numa rede social – parece-me que se ultrapassa uma fronteira que é a da intimidade versus domínio público.


Recentemente, um tribunal de Évora pronunciou-se a favor de serem retiradas da internet fotografias de uma criança, filha de um casal separado, colocadas por um dos progenitores e sendo o outro contra.

A primeira questão é que, no caso de os pais não chegarem a consenso, é para isso que os tribunais servem: dirimir conflitos, seja na escolha de escolas, no professar religiões ou na mudança de residência para longe, por exemplo. A intervenção do tribunal não é um drama, pois existe exactamente para resolver litígios deste tipo.

Quanto ao assunto em concreto, a publicação de fotografias na internet, nas redes sociais, cada leitor terá um entendimento da situação e não serei eu quem vai fazer juízos de valor. Apenas irei emitir a minha opinião.

Como em qualquer caso de exposição pública – mais aguda em crianças –, deve responder-se a algumas questões: qual o interesse de publicar? Quem beneficia com isso? Quais os potenciais efeitos colaterais? Faz-se com ligeireza? Terá quem publica a noção de que a fotografia ficará para sempre num servidor, e acessível enquanto online no Facebook ou Instagram? Queremos mostrar a fotografia à família e aos amigos ou aos sete mil milhões de habitantes do planeta?

Qualquer publicação da imagem de uma pessoa sem sentido ou objectivo que não o narcisismo dos pais para mostrar “que pais formidáveis que somos que temos uma criança tão linda” é, quanto a mim, leviana, porque as crianças não são objectos, bonecos de peluche ou troféus de caça. O narcisismo é muito evidente nas redes sociais. Basta ver os posts em que se conta tudo o que se faz, numa necessidade quase compulsiva de se fazer notar, ou muitas fotografias dos perfis e os comentários que estas suscitam: “Que gira!”, “Uau!”, “Estás liiiiinda!”, “És de morrer!”… Dava uma tese de doutoramento, como diria um cínico.

Voltando ao tema, uma coisa é tirar uma fotografia da criança e mostrar ao círculo mais próximo de familiares e amigos, outra é colocá-la numa rede social – parece-me que se ultrapassa uma fronteira que é a da intimidade versus domínio público mas, desde que não sejam fotografias humilhantes ou situações ridículas ou sem pudor, também não façamos disso um drama.

Quanto ao ciberbullying, há relato do seu número crescente, com o impacte enorme que tem pela universalização da chacota e da agressão, mas a colocação não é feita pelos pais. Contudo, o fenómeno não é novo e quem não se recorda do mau gosto daqueles programas dos anos 80 e 90 do século XX, com vídeos em que se viam miúdos a cair ou em figuras patéticas, só para gáudio dos pais, risota geral e audiências dos canais de televisão, que assim conseguiam programas gratuitos sem qualquer investimento de produção? Não sejamos hipócritas ou fundamentalistas, higienistas ou puritanos, mas apenas prudentes e respeitadores dos direitos e interesses das crianças.

Finalmente, há o receio generalizado de que a internet seja um local de “caça” para pedófilos, o que é tanto verdade como os bancos de jardim em frente das escolas. E por isso é preciso ter os cuidados e a atitude preventiva que passa, por exemplo, por limitar acessos e não autorizar páginas de redes sociais a crianças… ou até telemóveis. Não esqueçamos também que os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual das crianças podem ou não ser praticados por pedófilos – e a pedofilia não é crime, mas a isso voltaremos – e não esqueçamos que mais de 80% dos crimes sexuais sobre crianças são cometidos em casa, por pais, padrastos, vizinhos, conhecidos – estes não precisam da internet para os seus actos. Pensar que na internet é que estão “os bandidos” é branquear o local onde a maioria deles se esconde: a casa, a escola e os círculos mais próximos e menos cibernáuticos…

P.S.: A propósito do artigo sobre a “água Torneirex” recebi uma extensa carta, esclarecedora e amável, do secretário-geral da APIAM, dando conta dos esforços que estão fazendo para reduzir o desperdício, melhorar a qualidade e promover a reciclagem, tendo já retirado o bisfenol A das garrafas de plástico. Agradeço o esclarecimento e o tom cortês. Mesmo continuando a ser adepto da água da torneira, aprendi algumas coisas sobre o que se tem feito neste campo e, do mesmo modo, como se pode debater assuntos de modo civilizado e com respeito mútuo.

Pediatra
Escreve à terça-feira