(leia a primeira parte da entrevista aqui)
A sua ligação com Jonas Savimbi, líder da UNITA, qual era exactamente? Pode contar uma ou duas histórias?
A minha ligação com o Dr. Savimbi está contada por mim, em pormenor, no “Jogos Africanos”. Surgiu num contexto davGuerra Fria, nos anos 80. Freedomfighters e tudo o mais. Mas houve sempre subjacente uma dupla preocupação: acautelar os interesses portugueses (tudo o que fizemos de importância foi sempre falado com os governos de Lisboa) e ajudar à paz entre os então contendores. Savimbi era um político com grande inteligência, grande dureza, mas também com a manha dos sobreviventes. Na sua primeira visita a Lisboa como líder da UNITA não houve tempo para lhe fazer um breafing antes de um encontro com militares, num almoço no Meridien. Ele esteve o primeiro quarto de hora quase todo calado, a observar e a ouvir, e depois disse: “Quando os cubanos nos perseguiam não tínhamos problema, quando eram os comandos portugueses é que a coisa se complicava porque andavam tanto como nós ou mais!” Ele sabia que era exactamente aquilo que os presentes queriam ouvir.
Falemos agora sobre o seu mais recente livro, “O Islão e o Ocidente”. Disse que os clichés chegam a ser histéricos. Porquê?
Há 1600 milhões de muçulmanos no mundo, os cristãos devem ser mais ou menos o mesmo número, um pouco mais. Se aceitarmos que as duas civilizações, entre aspas, são inimigas e devem combater-se, isto acaba muito mal, é meio mundo contra outro meio. Há aqui o cliché do medo, que é como as opiniões públicas – muito influenciadas pelos media – olham cada vez mais para o islão.
Por causa do radicalismo…
Ser radical em si não é um mal nem um bem. Oscar Wilde dizia que a curiosidade não é boa nem má, tanto podia dar para descobrir a América, como fez Cristóvão Colombo, como para espreitar pelos buracos das fechaduras. A radicalidade é igual, pode dar um Inácio de Loyola ou uma Madre Teresa, que se dedicaram a grandes causas, ou exterminadores de campos de concentração e bombistas suicidas, que levam milhares atrás.
Mas os atentados e o medo são reais.
A radicalidade no mundo islâmico, o jihadismo, quer na forma da Al-Qaeda quer do Estado Islâmico, tem todo o interesse em reduzir o Ocidente a uma espécie de super “Charlie Hebdo” de caricaturistas, obcecados com fazer bonecos do Profeta e em fazer à religião muçulmana aquilo que já faziam à religião católica. Só que os católicos passaram a dar a outra face, ou pelo menos a desaparecer da sala quando são provocados. E os muçulmanos não alinham nesse jogo.
É terrorismo.
Responderam violenta, brutal e selvaticamente. Se os clichés e as imagens trocadas forem essas, do radicalismo jihadista de faca nos dentes e bomba suicida, que entra a matar turistas numa praia na Tunísia ou a fazer um avião ir pelos ares, é evidente que a opinião pública europeia e americana vai associar o mundo islâmico a isso. Ao mesmo tempo, o mundo islâmico e as centenas de milhões de muçulmanos vão ver o Ocidente como o “Charlie Hebdo” e os apoiantes do “Charlie Hebdo”. E então estamos muito mal. Porque em ambos os casos trata-se de minorias.
Até que ponto é lícita a intervenção do Ocidente em Estados soberanos?
Há dois aspectos importantes. Um é o capital de queixa do mundo muçulmano em geral em relação ao Ocidente, que é muito significativo e começa logo no século xix, sobretudo com a França e a Inglaterra no Norte de África – Argélia, Marrocos, Egipto e Tunísia –, mas também no Médio Oriente, primeiro pela força militar, depois pelas finanças. O filme “Lawrence da Arábia” retrata isso muito bem [um jovem dos serviços de informações britânicos que tenta ajudar os árabes e acaba traído pelos seus próprios poderes]. Depois, sobretudo a seguir ao fim da Guerra Fria, e com alguma histeria, exportámos as nossas instituições democráticas de uma forma bastante leviana, para ver o que dava.
Quando não deu, ninguém se preocupou muito. Mas há uma frase de Henry Kissinger [ex--secretário de Estado dos EUA] – de quem gosto e que admiro – que subscrevo. Ele diz que prefere a injustiça à anarquia e à desordem. Mais vale a injustiça e ir avançando progressivamente, que destruir toda a espécie de ordem, que foi o que fizemos – nós, quer dizer os americanos – em relação ao Iraque, à Síria e à Líbia. É evidente que estamos a falar de estados quase cleptocráticos, mas aquilo que podemos fazer é ajudar os governos e as pessoas destas regiões, não é substituirmo-nos a eles e depois, à mercê dos nossos movimentos de opinião, nunca mais querer saber do que ali se passa. Esse tipo de intervenções de que “os ocidentais” são paladinos de serviço é um desastre. Tento criar algum equilíbrio entre o exagero da autoculpabilização, em que os ocidentais são uns bandidos que saqueiam o mundo, e o oposto, uns desgraçados pioneiros de boas causas.
Se lhe pedisse hoje que desfizesse mitos, quais seriam?
A união política europeia nesta fase histórica é contranatura. As pessoas reagem muito mais como alemães, ingleses, gregos, italianos do que como europeus. Se houvesse comunidade, estes problemas das dívidas nem se punham. Existe o mito de uma Europa federal agregadora dos povos. A nação continua a ser, por muita volta que lhe tenham dado, a forma mais perfeita de organização política. Vou glosar Churchill: talvez seja imperfeitíssima, mas as outras são muito piores. Todos os estados plurinacionais podem fragmentar-se e assistimos às tendências separatistas da Catalunha e da Escócia. São os estados à procura da nação e as nações à procura dos estados.
A paz e a prosperidade também são mitos?
Deixou de haver guerra porque a Europa deixou de ser o centro do mundo. A partir de 1945 já não era aí que estavam as sedes das grandes potências e passou a haver armamento nuclear, não foi porque se fez a União Europeia. Claro que a UE trouxe benefícios aos seus povos, mas tentar sufocar séculos de diferenças, a identidade das nações, com base na promessa de euforia económica, numa espécie de país da Cocanha, onde tudo corre bem, onde não há conflitos, foi um mito vendido a vários povos e também aos portugueses.
A euforia deu lugar ao desânimo, que está a dar lugar a quê?
A euforia de repente caiu. Foi o que aconteceu aos portugueses, aos gregos e acontecerá amanhã aos italianos ou aos espanhóis. Os cidadãos vêem-se coarctados com as políticas de austeridade e perguntam-se para onde foi o dinheiro, porque nos endividámos, quem ganhou com isso. Há um fortíssimo sentimento de injustiça que se traduz na força destes partidos de protesto que surgem um pouco por toda a Europa, em Espanha, Itália, França – já com um projecto nacional radical identitário. E não é de espantar esta ideia um tanto maniqueísta de que são uma espécie de forças do mal que estão a despertar contra aquela pacífica e tranquila marcha para a prosperidade, que também é outra análise retórica e mitológica da crise que nos querem vender. A ideia de uma grande parte das classes políticas europeias de reduzir a política à economia e reduzir o Estado a uma espécie de seguradora dos cidadãos – que lhes garantia eternamente bem-estar, bons colégios para os filhos, saúde gratuita – foi um erro tremendo que estamos a pagar muito caro.
Se alguma coisa positiva trouxe esta crise da Grécia foi que se voltou a discutir política, não?
A política tem um lado de realidade e de tragédia que está a surgir. Surge agora com a crise da Grécia, mas surge também com a questão dos refugiados que fogem para a Europa, da ameaça jihadista, de Putin e da Rússia nas fronteiras leste. Tudo isso vem quebrar esta alegria de viver em que artificialmente grande parte das classes políticas europeias e dos partidos do chamado centrão puseram os povos da Europa. Geralmente, quem está na política – e não faço juízos de valor, porque há pessoas decentíssimas e honestas e até esforçadas nos partidos –, são burocratas do sistema partidário. Parte substancial dos dirigentes políticos foram-se treinando na carreira partidária. Começaram desde pequeninos e foram, através da vida partidária, tendo experiências de direcção e de gestão.
O que lhes fica a faltar, definitivamente?
Há duas faltas profundas. Primeiro, têm falta de conhecimento teórico. A política também tem os seus clássicos e duvido que a maior parte dos dirigentes políticos tenha lido, mesmo em resumos, ou pelo menos em antologias dignas desse nome, os clássicos – Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Maquiavel, Hegel, Kant –, ou os modernos, como Nietzsche, ou os fundadores do marxismo, da democracia. A maioria deles tem uma simpaticíssima ignorância – sabe, às vezes uns filósofos de trazer por casa, citados na literatura de divulgação, e lá soltam uma frase, mas sem nenhum conhecimento básico.
Qual é a segunda falta?
Falta muito aos políticos o lado trágico da vida, a experiência. As gerações mais novas não apanharam isso, mas nós, os que apanhámos o período da guerra de África, da Revolução, fosse qual fosse o lado onde estivéssemos, apanhámos esse lado mais trágico, mais interveniente da política. A partir de 1986, da acalmia nacional, esse lado desapareceu. E quando os povos querem iludir a história, ela agarra-os pela garganta. É curioso que tenhamos substituído essa tragédia histórica pelas pequenas tragédias dos outros, do dia-a-dia, pelos crimes passionais das primeiras páginas do “Correio da Manhã” ou pelas alegrias das revistas cor-de-rosa, em que é tudo, até os velhos, jovem, loiro e magro, e vão todos de férias para sítios fantásticos. Esta vida é ilusória, não existe.
Os gregos, e não só eles, estão a viver uma tragédia. Afirmou muito antes disto tudo que o Syriza era uma coisa da imaginação. É uma imaginação fértil?
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Não. O Syriza tem uma base teórica marxista mas é um marxismo universitário. Os ideais da esquerda eram exactamente nem Deus, nem pátria, um princípio internacionalista. Mas com habilidade, as esquerdas, inclusive em Portugal, têm jogado na questão do patriotismo, do orgulho nacional, da humilhação nacional.
Vão acabar orgulhosamente sós?
Não é tão mau como isso, toda a vida preferi estar orgulhosamente só a mal acompanhado ou com companhias ambíguas. Não sei se é assim que vai acontecer. Não sabemos, mas penso que pelo menos em termos de desafio é interessante e mostra a tal imaginação. São escolhas.
Chegou há pouco dos Estados Unidos. Lá uma federação parece um assunto mais fácil que na Europa.
Os Estados Unidos nasceram por uma guerra da independência, relativamente longa, tinham um princípio fundamental de unidade. Os estados da Europa estão unidos contra quê? Só se for agora contra Putin, que é uma coisa com que estão entusiasmados. Fazemos uma guerra contra Putin e contra os russos e depois fazemos uma guerra civil do Norte industrioso e trabalhador contra o Sul, se acharmos que há vantagem nisso. Os jornais americanos, tirando o “Wall Street Journal” e o “New York Times”, que são lidos pelas elites, não ligam nada à Europa nem à Grécia. As notícias são notícias sobre a América, mas esta é outra ilusão que temos, a de que somos o centro do mundo. Deixámos de ser há muito tempo, porque é que haveríamos de ser? Somos sim, e isso é um lado muito agradável, um sítio óptimo para se estar, para viver. Nas cidades decadentes da antiguidade vivia-se muito bem. A China está a tornar-se uma grande força, mas estou convencido que a maior parte das pessoas, mesmo os chineses ricos, preferem passar férias na Europa a passá-las na China.
Como vê a liderança de Obama?
Obama resultou, e com legitimidade, de uma certa reparação histórica dos Estados Unidos em relação a uma parte da população. É curioso que, muito antes da sua eleição, já aparecia em séries televisivas como “24” [”24 Horas”] um presidente negro, magnífico, por oposição a um presidente branco, uma espécie de bandido. Depois há outra série, “Commander in Chief” [”Senhora Presidente”], em que uma mulher [representada pela actriz Geena Davis] é presidente. Existe este lado político-cultural, em que se vão resolvendo alguns problemas com a história. E é evidente que Barack Obama deveu muito a isso. É um homem inteligente, que tem a sua política, embora procure muito mais gerir contradições e conflitos que tomar decisões. Penso que a intervenção no Iraque foi uma decisão politicamente desastrosa, sobretudo a política pós-vitória e a forma como saíram. Os desgraçados dos médio-orientais é que pagaram e ficaram três países, Iraque, Líbia e Síria, completamente escaqueirados.