Gostei sempre muito dos romances de Umberto Eco, não só pela qualidade da escrita e pela fertilidade da imaginação e da erudição, mas também porque sempre neles encontrava, por mais fantasiada que fosse a trama, uma poderosa análise da realidade e uma evidente ponte para os mistérios, as alegrias e as misérias do nosso tempo. Mas há sempre uma primeira vez para tudo, até para a desilusão com um romancista que elegemos para o nosso olimpo.
A minha chegou com “Número Zero”, o romance mais recente, em que a escrita mantém a qualidade e a imaginação e a erudição continuam férteis, mas onde não encontro qualquer ponte para o nosso tempo nem qualquer utilidade para analisar a nossa realidade. Dizem as recensões, a contracapa e o autor em entrevistas que o livro trata principalmente do jornalismo, sendo retrato de um certo modo actual (e mau) de o praticar. Comprei e li, e andei à procura disso, mas não encontrei. O livro é, entre outras coisas, sobre jornalismo, de facto é. Mas só encontrei fantasia, nada de pontes para o tempo e a realidade de hoje.
Por exemplo, Simei e Colonna dialogam, no capítulo iii, acerca do enorme peso que a comunicação social tem sobre o pensamento, as opiniões e as visões das pessoas, ao ponto de muita gente estar convencida de que a expressão “olho do furacão” designa a parte mais violenta de um furacão, porque esse é o sentido que a televisão e a imprensa lhe dão habitualmente, quando a verdade da ciência nos diz que o olho de um furacão é a sua parte calma, e não aquilo que os media e o hábito nos puseram a pensar que é.
Por exemplo, ainda no mesmo capítulo, Braggadocio chega a aventar ao chefe, Simei, a hipótese de, em busca de notícias, serem eles a pôr uma bomba. Simei reage advertindo-o de que não diga disparates, mas acaba por reconsiderar e diz-lhe que, se o fizer, não lhe diga nada. Por exemplo, no capítulo v o autor chega aos píncaros da fantasia, quando põe as suas personagens a discorrer sobre modos de fazer ou passar opinião sob a forma de notícias, sem dar nas vistas. E chega ao ponto de dizer que não são as notícias que fazem o jornal, mas o jornal que faz as notícias. Cruzes canhoto, ainda bem que isto só acontece no jornal que o escritor fantasia para o Comendador Vimercate. E o delírio vai em crescendo, ao ponto de, por exemplo, no capítulo xi, se falar em políticas editoriais que cultivam a arte do dossiê e da insinuação, ou, no capítulo xv, se falar (com um ligeiro tom elogioso) da dissimulação ou do encobrimento de coisas importantes sob um mar de noticiazinhas, de fait-divers e de entretenimento.
Continua um hábil escritor, Eco, e um poderoso erudito, mas já só navega nas águas da imaginação e da fantasia, perdeu todo o sentido do real. Para os leitores é pena, mas ainda bem para os cidadãos. Se “Número Zero” tivesse um pingo de realidade, nem sei como seria. Talvez já nem o riso aristotélico que o velho monge queria banir em “O Nome da Rosa” nos salvasse.
Advogado
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