Quando assumiu o Central como seu, encarou a máquina de tirar café com desconfiança. “Trabalhava como técnico de refrigeração, nem sabia o que era um carioca de limão”. Ainda se ri ao recordar a primeira semana de trabalho e não esquece um cliente em particular que lhe pediu uma italiana. “Disfarcei como pude, dei uma corrida ao café do lado para que me dissessem o que era e não fazer má figura”. Agora, com 33 anos à frente de um dos cafés mais movimentados de Ponte da Barca, Júlio podia tirar cafés até de olhos fechados.
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Apesar do espaço ter pertencido inicialmente aos seus pais, Júlio nunca teve pretensão de seguir o negócio e, ainda muito jovem, emigou para a Austrália. Mas mãe é mãe, e a de Júlio, como todas as outras, queria manter os seus perto de si. Para o fazer repensar a ideia de viver do outro lado do mundo, deu-lhe para as mãos a chave do café. “Agora é teu”, disse-me ela. Júlio, que tinha vindo só de férias, acabou por nunca mais voltar. “Ainda hoje guardo o bilhete que me garantia o regresso a Sidney”. Se o negócio já era de família, Júlio ainda o tornou mais familiar. Aproveitou o espaço ao lado para abrir um restaurante, com a mulher, Beatriz, que assume há quase 30 anos uma das cozinhas mais concorridas das redondezas. Conta ainda com os dois filhos, André e Rui, que se desdobram entre os dois espaços num entra e sai de portas, com passagem certa pelo passeio da rua principal da vila.
Ao longo dos anos não lhe faltaram ofertas, garante. “E algumas bem generosas”. Mas nunca teve coragem de largar um negócio que a ser de passar, que seja para a mão dos filhos. “O Central é uma paixão”.
Central de outros tempos Se pouco ou nada resta da decoração original, desengane-se quem dá o antigo como perdido. “Tenho as mesas e as cadeiras de madeira todas guardadas. Vou restaurá-las e vão voltar para aqui, onde pertencem”. Ideia que parece agradar a quem se lembra do café de antigamente. “Mais bonito do que isto só mesmo o Majestic no Porto”. Um comentário destes obriga, no mínimo, a um virar de cabeça para confirmar quem quer participar na conversa. Bento Varela está sentado na mesa de todos os dias, que lhe serve de base para o café depois de almoço, as pataniscas do lanche e o jantar que Júlio lhe vai buscar ao restaurante ao lado. Aos 70 anos, assume-se como o cliente mais antigo do Central.
“Venho cá desde os dez, agora faça as contas”. Mas Bento nem dá tempo de juntar dois mais dois antes de começar a debitar histórias que provam melhor que qualquer número que a sua experiência é a de um habituê. “Toda a minha geração parava aqui e os poucos que são vivos ainda fazem disto ponto de encontro diário”. Já com os olhos a brilhar de memórias, conta pelos dedos das duas mãos aqueles que já não lhe fazem companhia. “Acaba por ser muito triste ver estas cadeiras vazias”. Bebe um golo da tacinha de tinto que tem à frente como que a dar ânimo para continuar. Das memórias que se cruzam, tem como a mais presente o momento de chegada à Barca de férias, nos 24 anos que viveu em França. “Às vezes vinha aqui antes mesmo de ir ver a minha mãe”.
Seja agora ou há 30 anos, o nome “Central” do café nunca perdeu sentido, mesmo com a vila a crescer noutras direcções. Ao subir a rua principal, o Central, paredes meias com o Nicola e o Varela, fazem o três em linha mais conhecido de Ponte da Barca. As mesas que os três cafés instalaram cá fora servem apenas para justificar o conceito de esplanada, até porque as cadeiras estão todas enconstadas à parede, numa espécie de primeira fila para tudo o que se passa na vila.
Dias especiais Para o Central existem dois momentos que fazem disparar as vendas, um deles anual e outro que varia com o que mostra o marcador. “A malta daqui é toda do Benfica, os do Porto só cá vêm para ver se perdem”, brinca Jaime, que marca lugar na esplanada apesar de não estarmos em tempos de campeonato. Já Júlio, que ouve a conversa a fingir um ar distraído, diz que aprendeu cedo “a jogar com os dois pés” e recusa-se a revelar qual é o seu clube. “Mas claro que fico contente quando o Benfica ganha, vende-se muito mais”, garante, aproveitando para lembrar o recorde batido em 83, num Benfica-Roma, em que a vitória portuguesa deu o mote para que se bebessem 200 litros de vinho tinto. “Agora é muito fraco, vendo no máximo cinco litros por dia”.
Apesar das lamúrias típicas de quem está à frente de um negócio, há uma semana por ano da qual nem Júlio se pode queixar. De 19 a 24 de Agosto, as festas de S. Bartolomeu fazem com que as ruas da vila ganhem – sem exageros, garantimos – o triplo da população habitual, o que para o Central significa ter gente quase a sair pelas janelas. “É uma loucura tão grande que só conseguimos fechar das 8 da manhã ao meio-dia”, conta o filho Rui, que nesses dias se vê obrigado “a dormir rapidinho”. Mas se os relatos podem remeter a algum exagero para quem nunca lá passou em Agosto, Júlio atira-nos com quantidades: em cinco noites de festa são vendidos 50 barris de cerveja e mais de mil pregos no pão, a especialidade da casa. Números destes até fazem com que Quinzinho levante os olhos – e os grandes óculos – do jornal. Cliente há mais de 50 anos, o hábito do “cafezinho no Central” está tão enraizado que nos poucos dias em que o Central fecha, prefere nem sair de casa. “Ui, nem me sentia bem a ir a outro lado, Deus me livre. Isto é como se fosse a minha casa”.