As leis tanto obrigam quem as faz como quem as aplica, mesmo que inicialmente tivessem apenas como propósito a regulação dos actos e casos de um conjunto terceiro de pessoas para quem prioritariamente foram pensadas.
É aqui que reside a sua virtualidade, mas também parte da dificuldade da sua aplicação, sobretudo se estão em causa amigos de sempre ou circunstanciais, inimigos jurados, ou apenas inoportunos contestatários.
Daí dizer-se com algum cinismo, e muita verdade, que “uma boa lei é aquela que serve para premiar os amigos e dominar os inimigos”.
A interpretação e aplicação das leis tanto constrangem, portanto, os aplicadores políticos e administrativos – estes, porventura mais – como, algumas vezes, os judiciais.
Num mundo em que os valores que erigiram os fundamentos da actual sociedade são respeitados apenas por alguns – mesmo entre os que teórica e enfaticamente os defendem –, o uso e boa aplicação das leis tendem, demasiadas vezes, a ser desvirtuados de maneira mais ou menos flagrante.
A mesquinhez, o preconceito, o arrivismo, a cobardia, a inveja, o egoísmo narcísico, a ignorância temerosa, os interesses económicos, burocráticos e carreiristas, a falta de todo o tipo de escrúpulos condicionam frequente e erradamente a feitura e aplicação das leis.
A questão não é tanto e sobretudo – como alguns possam pensar – uma questão de preconceito ideológico, mas fundamentalmente de perda dos critérios ontológicos que justificam ou deviam justificar ambas as actividades.
A complexidade das leis, a extensão e contradição dos interesses que regulam contribuem para o desacerto ou o oportunismo dos decisores.
Cada vez mais somos confrontados com pequenos e grandes truques que escondem pequenos e grandes ajustes de contas; o que qualquer lei sempre permite, dada a sua impossível perfeição.
A rectidão de princípios, a procura muito dificilmente alcançável – reconheça-se – de uma neutralidade perante o problema que tem de ser resolvido, têm definhado, e tal recuo agrava-se perante a ambição, a incapacidade ou o medo dos decisores de assumirem responsabilidades ou de reconhecerem o erro.
Este tipo de condicionamentos tanto se verifica ao nível das decisões tomadas nas grandes instituições internacionais e europeias como ao nível nacional e, mais prosaicamente, ao nível da mais inconsistente secretaria ou serviço público.
Claro está que, para dirimir, ultrapassar e compensar os danos produzidos por este tipo de decisões, existem os tribunais, e estes com as suas várias instâncias de recurso, para assim evitarem que aqueles vícios possam afectar definitivamente todo o sistema.
Acontece que os tribunais são, por natureza, lentos, para serem seguros, e caros, porque – pese o que se refere na Constituição – a justiça tem de ser um bem escasso, como há algum tempo vem sendo dito.
Isto limita aos tribunais a eficácia do recurso e condena, muitas vezes, os alvos das decisões injustas e capciosas à rendição ou ao recurso a outras vias de resolução de conflitos ou satisfação de interesses.
Só que por esta via alimentam-se venenos letais que tendem a infiltrar-se e a corroer as instituições, fazem-se inimigos que apenas esperam a oportunidade para se vingarem e destrói-se a legitimidade do sistema.
Tráfico de influências, corrupção e autoritarismo, brutal ou mais dissimulado, passam a ser instrumentos usados, porque aceites, na vida das sociedades cujos valores cívicos foram erodidos.
Fazem falta, toda a falta, lealdade, transparência e coragem na feitura das leis e na sua aplicação.
Jurista. Escreve à terça-feira