A inverdade do âmbar


O âmbar é bonito, sem dúvida. Mas o pescoço dos vossos bebés é bastante mais. Os dentes nascerão e crescerão, com maior ou menor sofrimento, mas não queiram que o vosso filho seja a abertura do telejornal das oito.


Vejo todos os dias crianças do sexo feminino, entre os nove meses e os quatro anos, que trazem ao pescoço colares de cor amarelo-ouro, feitos de pequenos bocadinhos de âmbar presos por um fio branco elástico, mas não quebrável. A razão adiantada pelos pais para esse hábito é quase sempre a mesma: “para evitar as dores de dentes”.

Confesso que a primeira vez que ouvi este argumento, há muitos anos, fiquei perplexo, porque nunca tinha visto referenciado nada de científico sobre os efeitos “milagrosos” deste colar. Nem dados científicos, nem resultados de estudos aleatórios, indicadores de impacto e outras coisas que pertencem à metodologia epidemiológica e científica.

Os argumentos dos pais (mães!) que colocam colares baseiam-se em fé, convicção, crendice, moda, Facebook, comércio, “acho giro”, “que mal tem”… o que quiserem, mas para não correr o risco de me enganar, voltei agora, como há 20 anos, quando dirigia a APSI, a pesquisar exaustivamente o assunto. Resultado: nada que me desse algum palpite sobre as vantagens do seu uso, a não ser o sítio de um dentista norte-americano chamado Ambar…

Decidi há uns tempos mandar mails para a Academia Americana de Pediatria e outros locais de elevada reputação científica. A resposta chegou: nada existia que confirmasse a acção do âmbar sobre as dores da dentição, mas o meu pedido tinha sido encaminhado para a Faculdade de Medicina de Harvard, para um departamento que se chamava qualquer coisa como isto (não estou a brincar!): “Pediatria e Feitiçarias”.

A resposta, que transcrevo, porque ainda guardo o mail de há anos, confirmou o que já pensava: “Colocar colares de âmbar no pescoço das crianças é uma prática ancestral, mas constitui um equívoco científico e traduz primitivismo, sendo mais vulgar nas tribos pouco desenvolvidas. Além de não fazer rigorosamente nada, a não ser o efeito psicológico sobre os pais que pensam que estão a fazer alguma coisa num assunto em que há muito pouco de preventivo a fazer – a dentição e as suas dores –, comporta um enorme risco de a criança poder prender o colar em algum local e, com os seus gestos repentinos, mesmo um colar com 33 cm, poder enganchá-lo, sobretudo na Primavera e Verão, em que andam mais ‘esgoleirados’ e, com o movimento brusco, causar um estrangulamento ao nível da ‘maçã de Adão’ – ou seja, laringe e osso hióide, e ainda nas veias jugulares e nas carótidas –, podendo sufocar, causar desmaio ou um golpe de extrema gravidade na traqueia.” Os meus interlocutores do espaço cibernáutico foram unânimes: “É desaconselhável colocar colares de âmbar no pescoço das crianças.”

Posto isto, transmito aos leitores a minha opinião, mesmo que vá contra a moda e o politicamente (in)correcto das redes sociais: de que vale termos cuidado com certos riscos, vacinarmos as crianças, cuidarmos da sua alimentação e saúde para, afinal, favorecermos a hipótese de estrangulamento e morte pelos colares?

O âmbar é bonito, sem dúvida, mas o pescoço dos vossos filhos é bastante mais. Os dentes nascerão e crescerão, com maior ou menor sofrimento – são as dores incómodas mas necessárias que acompanham qualquer processo de crescimento. O enforcamento ou a morte de uma criança não valem o show-off nem a moda (ou o negócio) dos colares, mesmo que de âmbar.

Finalmente, não deixa de ser curioso que as mães (porque a escolha é sobretudo delas) só coloquem os colares de âmbar às raparigas… então os rapazinhos, coitados, não mereceriam também ser isentados das tais dores de dentes?

Mesmo sem casos (ainda) em Portugal, estaremos à espera do primeiro para as televisões darem directos às 8 da noite e todos se compungirem e chorarem a morte dessa criança? Que tal esquecer, por um instante, a “cultura” das redes sociais, Facebook e blogues, e voltar a acreditar numa coisa chamada ciência?

Pediatra
Escreve à terça-feira 

A inverdade do âmbar


O âmbar é bonito, sem dúvida. Mas o pescoço dos vossos bebés é bastante mais. Os dentes nascerão e crescerão, com maior ou menor sofrimento, mas não queiram que o vosso filho seja a abertura do telejornal das oito.


Vejo todos os dias crianças do sexo feminino, entre os nove meses e os quatro anos, que trazem ao pescoço colares de cor amarelo-ouro, feitos de pequenos bocadinhos de âmbar presos por um fio branco elástico, mas não quebrável. A razão adiantada pelos pais para esse hábito é quase sempre a mesma: “para evitar as dores de dentes”.

Confesso que a primeira vez que ouvi este argumento, há muitos anos, fiquei perplexo, porque nunca tinha visto referenciado nada de científico sobre os efeitos “milagrosos” deste colar. Nem dados científicos, nem resultados de estudos aleatórios, indicadores de impacto e outras coisas que pertencem à metodologia epidemiológica e científica.

Os argumentos dos pais (mães!) que colocam colares baseiam-se em fé, convicção, crendice, moda, Facebook, comércio, “acho giro”, “que mal tem”… o que quiserem, mas para não correr o risco de me enganar, voltei agora, como há 20 anos, quando dirigia a APSI, a pesquisar exaustivamente o assunto. Resultado: nada que me desse algum palpite sobre as vantagens do seu uso, a não ser o sítio de um dentista norte-americano chamado Ambar…

Decidi há uns tempos mandar mails para a Academia Americana de Pediatria e outros locais de elevada reputação científica. A resposta chegou: nada existia que confirmasse a acção do âmbar sobre as dores da dentição, mas o meu pedido tinha sido encaminhado para a Faculdade de Medicina de Harvard, para um departamento que se chamava qualquer coisa como isto (não estou a brincar!): “Pediatria e Feitiçarias”.

A resposta, que transcrevo, porque ainda guardo o mail de há anos, confirmou o que já pensava: “Colocar colares de âmbar no pescoço das crianças é uma prática ancestral, mas constitui um equívoco científico e traduz primitivismo, sendo mais vulgar nas tribos pouco desenvolvidas. Além de não fazer rigorosamente nada, a não ser o efeito psicológico sobre os pais que pensam que estão a fazer alguma coisa num assunto em que há muito pouco de preventivo a fazer – a dentição e as suas dores –, comporta um enorme risco de a criança poder prender o colar em algum local e, com os seus gestos repentinos, mesmo um colar com 33 cm, poder enganchá-lo, sobretudo na Primavera e Verão, em que andam mais ‘esgoleirados’ e, com o movimento brusco, causar um estrangulamento ao nível da ‘maçã de Adão’ – ou seja, laringe e osso hióide, e ainda nas veias jugulares e nas carótidas –, podendo sufocar, causar desmaio ou um golpe de extrema gravidade na traqueia.” Os meus interlocutores do espaço cibernáutico foram unânimes: “É desaconselhável colocar colares de âmbar no pescoço das crianças.”

Posto isto, transmito aos leitores a minha opinião, mesmo que vá contra a moda e o politicamente (in)correcto das redes sociais: de que vale termos cuidado com certos riscos, vacinarmos as crianças, cuidarmos da sua alimentação e saúde para, afinal, favorecermos a hipótese de estrangulamento e morte pelos colares?

O âmbar é bonito, sem dúvida, mas o pescoço dos vossos filhos é bastante mais. Os dentes nascerão e crescerão, com maior ou menor sofrimento – são as dores incómodas mas necessárias que acompanham qualquer processo de crescimento. O enforcamento ou a morte de uma criança não valem o show-off nem a moda (ou o negócio) dos colares, mesmo que de âmbar.

Finalmente, não deixa de ser curioso que as mães (porque a escolha é sobretudo delas) só coloquem os colares de âmbar às raparigas… então os rapazinhos, coitados, não mereceriam também ser isentados das tais dores de dentes?

Mesmo sem casos (ainda) em Portugal, estaremos à espera do primeiro para as televisões darem directos às 8 da noite e todos se compungirem e chorarem a morte dessa criança? Que tal esquecer, por um instante, a “cultura” das redes sociais, Facebook e blogues, e voltar a acreditar numa coisa chamada ciência?

Pediatra
Escreve à terça-feira