Se deixarmos que seja o GPS a tomar as rédeas da viagem, passamos pela placa que diz “Bem-vindos a Vila Marim” e a que nos deseja continuação de “Boa Viagem” sem ver sinais de gente. Depois de algumas tentativas de vai-e-vem, vemos uma cabeça a espreitar numa das poucas casas à beira da estrada. Nada como parar, abrir o vidro e perguntar onde é o centro da aldeia. “Tem de subir, subir, subir e aí já vê o cemitério, a igreja e o Café Central.”
Palavras mágicas para quem tinha já feito quase 200 quilómetros para encontrar um estabelecimento que, apesar de pouco glamoroso, podia fazer parte de qualquer lista de esplanadas com melhor vista do país. Num ponto alto da serra do Alvão, o olhar perde–se entre as vinhas que rasgam uma paisagem que só termina quando os olhos se põem no Douro. Com este cenário pintado e debaixo de 38 graus, só mesmo uma cerveja gelada podia tornar a paisagem ainda mais agradável. Como que a personificar o nosso pensamento, Jorge Alves está sentado na esplanada com a paisagem à frente, uma Sagres em cima da mesa e a “Bola” na mão, a completar este triângulo mágico.
“Isto para mim é uma bíblia”, diz enquanto foca a leitura na manchete que dá conta da chegada de Tarrabt à Luz. É exactamente nos jogos entre o Benfica e o Porto que o ambiente mais aquece no café. “O Sporting não dá tanta pica, toda a gente sabe”, diz com ar trocista. “Não dá? Até parece que te esqueceste”, interrompe Margarida, com um pé fora e outro dentro do café para evitar que o fumo do cigarro que tem na mão incomode quem está no interior. Na cabeça de todos surge a mesma história e começa uma troca de olhares cúmplices que dão a entender que a viagem já valeu a pena.
Há cinco anos, António Barracas matou Vítor Lapa com quatro tiros no final de um Sporting-Porto (3-0). Ao ver o seu clube perder e já com uns copos a mais, começou a meter-se com toda a gente do café, mas Vítor, “que não se metia com ninguém”, garante Margarida, preferiu sair para evitar confusões. Mas Barracas não se deixou ficar e, já de pistola em punho, gritou a frase que até hoje todos sabem de cor: “Ninguém vira costas ao Barracas.” Com quatro tiros, matou Vítor e ameaçou quem se meteu no caminho. “Eu ainda tive a pistola apontada à cabeça”, conta Margarida.
Num café com 25 anos e com cada vez menos movimento, esta história foi tema de conversa entre os clientes durante meses. “É algo que ninguém esquece, volta e meia a conversa ainda vem à baila.” O Barracas – como era conhecido por todos – apanhou 20 anos de cadeia, mas o Vítor, esse, “coitadinho, veio tomar café e já não saiu daqui vivo”, lembra Margarida.
EMIGRAÇÃO Tal como a maioria das terras do interior do país, também Vila Marim não escapou à vaga de emigração dos últimos anos. Para os poucos que decidiram manter-se fiéis às origens, o encontro está marcado no Café Central que, apesar de não ser o único estabelecimento do género no raio mais próximo, é com certeza o mais bem frequentado. Quem o garante é Margarida, que faz das duas salas que compõem o café uma espécie de prolongamento da sua casa, mais não seja por viver há 15 anos mesmo em cima do Central.
Para os vizinhos de baixo, só tem elogios – “do barulho não me queixo, que eu também sou barulhenta” –, e nem a roda viva de gerências que por lá já passaram parecem influenciar o conceito original do café. “É o convívio, é o ambiente familiar, é o chegar e já saber quem encontro.” Nesta tarde de calor, o lugar marcado é na mesa de Ana, a vizinha da frente, que aproveita uma pausa na lida da casa para vir tomar um cafezinho. “Vamo-nos entretendo por aqui, é o que temos.” Apesar de terem vivido sempre em Vila Marim, estão à espera do fim do mês de Agosto para partirem para França, aproveitando a época das vindimas. “Em 26 dias de trabalho ganho 2500 euros”, garante Ana, “então não vale a pena ir todos os anos?”
O entra-e-sai do país é tão natural para os poucos mais de 1500 habitantes de Vila Marim como para aqueles que se deslocam da periferia para trabalhar no centro de uma cidade. O próprio dono do Café Central é um recém-chegado da Bélgica, onde trabalhou sempre como empreiteiro. Voltar à tranquilidade forçada da terra e estar à frente de um negócio como um café não está a ser tarefa fácil e Carlos Almeida franze o sobrolho na hora de prever o futuro. “Faço cem euros por dia, no máximo, quase nem dá para as despesas.”
O pai, António, mais pessimista, garante quase em tom de segredo que há dias que não entram nem 30 euros na caixa registadora e dá uma ajuda nas contas que Carlos faz de cabeça. “Só de luz são 500 euros, e de renda 350.” Com dois restaurantes e dois cafés abertos na Bélgica, recorre à sua experiência para prever uma morte certa para o negócio. “Só espero que alguém pegue nisto, senão o que é feito desta gente?” Margarida acena com a cabeça em sinal de concordância. São duas da tarde e já conta duas descidas ao café. Antes de subir a casa, acende mais um cigarro à porta e despede-se com o “até logo” habitual de quem tem nova descida marcada para a hora do lanche.