Durante cerca de 15 anos foi uma espécie de braço-direito de Herman José. A pupila que acompanhava o mestre. Não o esquece nunca. No entanto, Maria Rueff reinventou-se, renasceu e é hoje outra actriz, mais completa. E também outra mulher.
A ideia de uma peça de teatro em Portugal já ter sido vista por 120 mil espectadores parece qualquer coisa de surreal…
É um fenómeno extraordinário. O “Lar Doce Lar” estreou há dois anos, precisamente no Casino Lisboa, onde estamos agora a repor. Tivemos meses e meses e meses a esgotar. Parámos, andámos pelo país, voltámos a Lisboa, voltámos a andar pelo país, sempre a esgotar. Agora voltámos a Lisboa e continua a estar cheio. Vamos ficar até 23 de Agosto.
O que acha que fez com que “Lar Doce Lar” fosse este sucesso?
São duas senhoras que chegaram aos últimos cem metros da vida com dinheiro e que estão ali, num lar, como se fosse um hotel de cinco estrelas. Mas acho que o grande segredo é mesmo a profunda amizade que há ali: são duas velhotas; eu sou uma retornada de Moçambique – o que, curiosamente, tem a ver com a minha própria vida – e o [Joaquim] Monchique, que faz um travesti perfeito, uma grande vedeta do nosso passado que sobreviveu no tempo. Elas querem ir para quartos individuais do lar, o que no fundo é mentira porque não passam uma sem a outra. Acho que as pessoas saem dali com a ideia de que temos todos o direito de curtir os últimos cem metros da nossa vida.
Isso contraria a ideia de que as comédias não fazem pensar e que são um género menor.
Isso é mundial. O cómico herda a tradição do saltimbanco. Há uma frase que é “vêm aí os cómicos, tranquem as pratas”. Desde os anos 40 que artistas como o Vasco Santana tentam mostrar que não é assim, mas as pessoas acham que somos os palhacinhos que fazem rir. Não imaginam o trabalho e a técnica que a comédia exige. É diferente ser engraçado numa mesa de café ou ser um profissional. Mas agora está na moda ser-se humorista.
O que se passa com o teatro em Portugal para uma peça como o “Lar Doce Lar” ser tão rara?
O problema são as políticas culturais. A política cultural de esvaziamento e de constantes cortes tem feito com que seja muito difícil sobreviver. Este ano foi penoso. Há, pelo menos, duas companhias que têm de fechar a porta por falta de apoios. Desde que entrei para o Conservatório que se fala da crise no teatro. E, de facto, lembro-me de ir a salas e estarem duas ou três pessoas na plateia. Mas agora isso já não é verdade. Esta nova geração vai muito ao teatro. As salas estão cheias. Mas faltam as políticas.
Continuamos a ser o país onde o orçamento para a cultura nunca chegou ao patamar do 1% do Orçamento geral.
Exactamente. Claro que a crise atiça o engenho, não conseguimos fazer de uma maneira, fazemos de outra. Há criadores que, só para manterem vivo o seu trabalho, trabalham de graça. Mas todos nós comemos, temos filhos e os aplausos não põem comida no prato. A crise, hoje, não é de público, mas continua a ser preciso injectar dinheiro na cultura. Isto é ainda mais triste porque um país sem cultura é um país morto. E isto nota-se muito no humor, porque o humor é o contrapoder. Uma rábula pode ser mais demolidora que uma lei e os poderes sabem isso. Neste momento, por exemplo, não há nenhum projecto de humor nas televisões nacionais…
E historicamente tivemos programas de humor muito importantes na nossa televisão…
E úteis.
O humor é incómodo para um Estado no estado do nosso?
É. É muito incómodo, de facto. O humor tem sobrevivido nas rádios e em estações não generalistas. Em canal aberto, o último programa foi o “Estado de Graça” e foi mandado acabar, apesar de ter chegado a ter mais audiência do que o “Telejornal”. Aliás, o termos feito o “Lar Doce Lar” é também um resultado da crise. Eu e o Monchique, desde o fim do “Estado de Graça”, há uns três anos, se não nos fizéssemos à vida, estaríamos os dois no desemprego.
O reverso da medalha é que tem feito mais teatro que nunca.
Sim. Sempre achei que não se pode fazer bem muitas coisas ao mesmo tempo. Por isso o meu percurso televisivo foi tão exclusivo. Foram 15 anos intensivos, a fazer rir todas as semanas, com aquela minha família artística. Isso é muito desgastante e não tinha espaço mental para fazer outras coisas.
Quando se tem uma vida profissional tão intensa, e durante tantos anos, quando termina fica uma sensação enorme de vazio?
Sim. O meu primeiro golpe foi acabar a parceria com o Herman [José]. Depois disso fiz trabalhos com a Ana Bola, com o Joaquim, fiz o “Estado de Graça”. Mas o fim dessa parceria, de muitos anos intensivos a jogar a dois, foi um golpe. Tenho muitas saudades dele e sei que ele também tem. Quando uma coisa acaba porque farta ou porque está mal feita, uma pessoa conforma-se, mas no nosso caso estávamos em pleno voo e em forma. Tive de me repensar. Tive a sorte de começar logo com o melhor do país e a sensação que tive foi: depois disto, faço o quê? E com quem? Tive de me virar para áreas diferentes, que não tinha trabalhado tanto, como o teatro.
Mas acha que as pessoas ainda sentem falta dessa dupla Maria Rueff – Herman José?
As pessoas querem programas de humor, querem rir. Vou na rua e pedem-me para voltar, por exemplo, o Nélio e Dália. E nós temos imensa vontade de voltar a trabalhar juntos. Ao mesmo tempo, o português é muito cruel. Não percebem a dificuldade, mas têm de perceber que estar 30 anos na crista da onda é de um mérito incrível. Temos uma certa tendência para a amnésia. E parece que estamos sempre à espera do momento em que a outra pessoa se espeta.
O Herman pagou profissionalmente a factura do envolvimento no processo Casa Pia?
Não quero falar sobre isso.
Não só tem feito mais teatro como tem feito muitas peças dramáticas. Há uma certa tendência para se catalogar os actores.
Pois há, mas eu formei-me como actriz. É óbvio que a comédia se notou logo no primeiro ou segundo ano. Mas, em geral, os grandes cómicos – os grandes, não sou eu – são normalmente grandes actores trágicos. Como o Chaplin, por exemplo. A comédia é a arte de pôr a lupa no defeito, e para nos rirmos do defeito temos de conhecer muito bem esse defeito. E quando se conhece muito bem o defeito, é-se triste. No Conservatório já tinha feito imensas coisas trágicas, mas era algo que estava na prateleira. Quando senti necessidade de me repensar, fui atrás desses outros registos. Foi também por isso que aceitei fazer a novela “Mulheres”. Tinha curiosidade de trabalhar aquele género, que não conhecia. Foi bom trabalhar essa endurance diária, ainda que um pouco monocórdica. Mas foi uma boa experiência. Imagino-me a fazer tudo, desde que me apaixone pelo projecto. Não quero morrer enquanto artista.
Mas não sente medo ao sair da sua zona de conforto?
Tenho sempre medo e insegurança. Mas não posso pensar que estou a fazer algo que não devo. Um actor é um actor. Não estou a dizer que vou dançar “O Lago dos Cisnes”, mas dentro da minha área posso fazer tudo. Acho que é tão bom termos a capacidade de surpreender o público. Tem tudo a ver com trabalho. Venho de uma escola de pessoas honestas e exigentes, mas porque muito competentes e profissionais. Não sei ser incompetente, só sei trabalhar com verdade. Por isso, às vezes, corre que tenho mau feitio e que sou arrogante, mas eu tenho é exigência e profissionalismo. Dou-me tanto e trabalho tanto que me faz muita confusão quem esteja nisto a brincar.
“António e Maria” é muito mais do que apenas uma peça de teatro?
Sim. Não o escondi. O Lobo Antunes é o meu autor da adolescência. “A Memória de Elefante” é um livro que me revolucionou, que me mostrou o mundo e a capacidade de uma pessoa se distanciar da dor e atingir a ironia. Foi com este livro que comecei a perceber os diferentes tipos de portugueses. Sempre quis mostrar o universo dele – uma parte – com o meu corpo. E há muito tempo que estava à espera de encontrar o momento certo para o fazer. Foi um trabalho que me saiu das entranhas.
Quando se mexe com as nossas gavetas…
Só consegui ir mexer nas gavetas justamente porque elas estão arrumadas. Senão teria feito terapia. E isto não é terapia. Eu, como actriz, uso a minha massa emocional. Mas há uma grande diferença entre estar ainda debaixo da emoção ou já estar distanciada e conseguir olhar com uma perspectiva crítica e artística. Agora, no processo de chegar às coisas, foi um trabalho muito duro e íntimo.
Já disse, noutras entrevistas, que teve uma vida torturada. Isso influenciou-a muito?
Claro. A minha família perdeu tudo com a descolonização. Aos dois anos saí do país onde nasci, Moçambique, e fui mandada, com mais duas irmãs, para Lisboa, porque a guerra estava a rebentar. Deixei de andar por causa disso. Tive um início de vida muito duro. Sobrevivemos pela amizade. Cresci com consciência disso e de que os valores são o que nos salva. Isto é uma roleta russa. Hoje podemos estar muito bem, amanhã podemos perder tudo.
De quando é a sua primeira recordação feliz?
Eu sempre fui feliz. Sim, de facto, tínhamos uma vida muito dura. Seis filhos, sem recursos, tirados de casa e enviados para um país que nos foi absolutamente hostil. Fui proibida de brincar no infantário com os meninos brancos por ser retornada. Fui fechada numa sala com os meninos pretos. Durante muitos anos tinha o complexo de dizer que tinha nascido em Moçambique porque, de facto, os retornados foram olhados de lado. As minha irmãs, adolescentes, usavam biquíni e, quando chegavam à praia na Figueira da Foz, eram consideradas meninas de pouca… enfim. Foi um processo muito doloroso e vivido em silêncio. Talvez seja isto que me tenha dado esta alegria e que me tenha feito ser humorista. Até porque éramos uma família, embora muito castigada, muito divertida. Brincávamos juntos, cantávamos, falávamos sobre tudo. Todos os nossos problemas eram resolvidos à mesa, em família. Tínhamos pouquíssimo dinheiro e, mesmo assim, todos os dias dormiam mais 20 retornados lá em casa.
A minha mãe dizia que enquanto houvesse chão para cama e água na panela podiam vir. Lembro-
-me de estarmos numa das filas do IARN [Instituto de Apoio ao Retorno dos Nacionais] para nos darem as latinhas de corned beef para comermos, e a minha mãe tinha mil escudos no bolso, os últimos. E deu-os a um casal de Angola. As minhas irmãs ficaram muito indignadas e a minha mãe respondeu: “Eu tenho a quem pedir, eles nem isso têm.” Quando se tem uma mãe que nos ensina isto…
Faz sempre referência a essa figura materna, essa mulher enorme da Beira Alta…
A minha mãe… Era uma verdadeira matriarca.
A minha bisavó já o era. E eu vivi nesse modelo, o que só fez com que tenha dificuldade em lidar com o leviano e com o fútil. Maquilhei-me pela primeira vez quando já andava no Conservatório. Em minha casa não havia batons nem rímeis e éramos cinco raparigas e uma mulherona, a minha mãe.
Cresceu no feminino, mas não na feminilidade?
Exactamente. Quer dizer, tenho este lado duro, mas sou muito feminina. Mas é um feminino dos bordados, do linho, dos vestidos… Para mim, um rapaz da serra, cheio de rosáceas, contente, e cheio de vida é que é profundamente sensual. Não é um sofisticado que vem do ginásio todo bombado com ar de Ken. Isso não me diz absolutamente nada. Fui habituada a gostar das coisas genuínas. Para mim não há nada mais sexy que o sentido de humor, que normalmente vem de uma profunda inteligência. Uma tirada inteligente é a coisa mais sexy que pode haver. O órgão mais sexy é a cabeça.
Diz que se habituou a que a tratassem como one of the boys.
Isso foi um epíteto que me pôs o Nuno Markl. Quando aterrei nas Produções Fictícias, a equipa que escrevia as minhas rábulas para o Herman eram só homens. Eu reunia-me com eles, dizia-
-lhes qual o boneco que queria fazer e ficávamos ali a trabalhar. E eles diziam que estavam à vontade comigo porque eu era one of the guys, era a amiga porreira com quem eles falavam. Estar no meio de uma conversa de rapazes é engraçado.
Mas ser a amiga porreira não é ingrato? Não tem de se anular como mulher para assumir esse papel?
Fui escondendo muito o ser mulher. Ou seja, não ia para ali de minissaia nem de decote. Mas eu também não sou nada de expor esse lado. Sou a pessoa que acha que a cena mais bonita e sensual do cinema é o furinho na meia da Holly Hunter, n’“O Piano”. As coisas mais bonitas são as mais difíceis. Não só na mulher, no homem é a mesma coisa. A minha mãe era muito bonita, parecia a Grace Kelly, mas arranjava-se de forma espartana. Eu não era maria-rapaz, mas não fazia a menor ideia se eram as pernas ou o peito ou o quê. Não fazia ideia se era gira, se não era. Aliás, nem estou habituada a ouvir o termo gira em relação a mim. Tenho, ainda hoje, um lado naive, puro, inocente, de miúda. Fico muito admirada quando vejo mulheres que sabem tirar partido delas. Eu não sei.
Tem muito mais recordações da sua mãe que do seu pai?
Sim, porque o meu pai morreu quando eu tinha 20 anos. Ele não viu nada do que me aconteceu artisticamente. Veio de Moçambique depois de nós e morreu quando eu estava no Conservatório. Os meus pais eram funcionários públicos e, depois da fase inicial mais difícil, foram integrados no Estado, aqui em Portugal – a minha mãe no Ministério da Educação e o meu pai nas Finanças, embora fosse um poeta. Era um homem cultíssimo, que me deu muitas das referências que tenho. Todos os fins-
-de-semana me levava a museus, vi tudo o que havia para ver no cinema, tinha uma cultura de História imensa. Devo isso ao meu pai.
Mais recentemente, perdeu a sua mãe…
Já partiram os dois. Como nasci fora do tempo, perdi-os cedo. Fazem-me muita falta. E é uma falta diária.
Que não se apaga nunca?
Nunca. Com a partida deles, ficou uma nuvem… Sinto muito isso nos Natais, na educação da minha filha… Faz-me muita falta, por exemplo, não poder contar com a minha mãe. E não é contar para tomar conta da Laura [filha], é contar para pedir conselhos, é contar com a sabedoria dela. E mesmo assim, a Laura, com 11 anos, também já é uma mulheraça. É uma grande ginasta, tem um dom que eu muito instigo porque me deixa feliz que ela tenha uma área em que os louros são dela, do suor dela, do trabalho dela. É difícil a ideia de que, nos anos que ainda estiver por cá, vou ter de caminhar sem eles. Fisicamente. Porque perpetuo-os muito dentro de mim.
Tem um lado muito espiritual?
Mas não é místico. Não é religioso, porque também não sou beata de sacristia. Mas acredito numa força qualquer superior. Tenho fé. E tenho de acreditar, a minha vida é a mostra disso. Tenho de acreditar em algo superior. Gosto de lhe chamar Deus, porque a minha mãe e o meu pai lhe chamavam Deus.
O Lima Duarte dizia que não sabia se acreditava em Deus ou se acreditava nos pais, mas como os pais acreditavam em Deus, ele não podia contradizer. [risos] E eu chamo-me Maria de Deus!
Disse que fazia questão de apoiar o dom da sua filha para a ginástica porque é uma área em que os louros são só dela. Isso é para combater o facto de ela ser filha de duas pessoas com carreiras públicas [Laura é filha de Maria Rueff e de José Pedro Vasconcelos]?
Sim. Tenho muito essa preocupação de não lhe pesar. Não queria que o meu apelido lhe pesasse. Queria ter a lucidez de, até ao fim, não lhe dar trabalho. Quando digo estas coisas, ela fica muito zangada e diz que quer tomar conta de mim. Temos uma relação muito cúmplice e honesta, conversamos sobre tudo e não lhe minto. Se pomos os outros em redomas, a primeira constipação vira uma pneumonia. A Laura tem acompanhado os meus êxitos, mas também as minhas infelicidades, os meus lutos. Não lhe escondo as minhas tristezas. Mas também não sou a amigalhaça dela, sou a mãe. E não me demito da figura de mãe.
Quando tinha a idade da sua filha, o que queria ser?
Costumo dizer que, como queria ser tudo, a forma que arranjei para ser tudo foi ser actriz.
Mas ainda teve um devaneio em Direito…
Sou da geração do canudo. Ser actriz era uma profissão muito mal-amada, era como enviar um filho para o degredo, para a pobreza e para a má fama. Não entrei em Direito por uma décima, mas entrei no Conservatório. Foi a minha mãe que me disse para seguir o meu sonho.
O que encontrou no Conservatório?
Cresci a ver o “Fame”. E tinha uma ideia romântica de que uma escola de artes era aquilo. É aquilo, mas também é muito duro. É uma área que tem muito a ver com talento, mas também trabalho e sorte. É preciso estar à hora certa, no sítio certo. E é preciso encarar o ser actriz como uma espécie de sacerdócio. Por isso fico tão indignada quando vejo as pessoas a brincarem com isto. Isto é duríssimo. Podemos ter seis meses de trabalho e depois estar um ano sem nada. A representação é uma doença, uma obsessão que não nos larga.
Qual foi o seu golpe de sorte?
Foi ter ido substituir uma colega na peça “Quem Muda a Fralda à Menina?”, com o Armando Cortez. Tive a sorte de conhecer esse mestre de comédia maravilhoso. E foi aí que conheci o João Baião e fomos fazer o “Café Teatro”, que foi visto por toda a gente: Herman, Bola, La Féria… Depois disso, o Herman chamou-me imediatamente.
O que pensou?
Nem pensei. Era uma miúda de 19 anos e estava tão contente! Nunca tive grandes perspectivas, as coisas foram-me acontecendo. Apesar de ser uma lutadora. Mas logo no primeiro trabalho que fiz, com a Bola, o Herman disse que nunca mais me largava. A imagem pode ser pirosa, mas senti-me a Cinderela. E durante muitos anos tinha medo que batessem as 12 badaladas e eu voltasse a ser a Gata Borralheira. Achei sempre que ia acordar do sonho. Porque eu cresci a adorar o Herman e, de repente, estava ao lado dele.
Lembra-se da primeira contracena que teve com o Herman?
Foi no “Herman Enciclopédia”, fazia de repórter. Estava pior que nervosíssima. E ele foi tão cuidadoso comigo! Ele próprio diz que notava uma reverência tão grande em mim que me tratou com pinças até termos o à-vontade que temos hoje, em que somos como irmãos. Mesmo assim, nunca me esqueço que sou pupila dele. E mantenho a admiração da miúda encantada que se ri das piadas dele, mesmo quando já as ouviu várias vezes.
A pupila virou a mestra no “Programa da Maria”, que foi um laboratório para uma série de novos talentos.
Foi. E teria continuado se não tivessem acontecido alguns azares históricos, como a tirania do “Big Brother”. Foi muito ingrato porque o programa tornou-se de culto e abriu espaço a outros programas como “Os Contemporâneos” e os “Gato Fedorento”. E permitiu-me chamar para o meio o Manuel Marques, o Nuno Lopes, a Mina Andala… tantos! Ainda cheguei a ser contratada para mais uma série pelo Emídio Rangel, mas depois ele saiu do canal. Curiosamente, depois o programa recebeu um Globo da própria SIC.
Foi a primeira vez que bateu de frente com a crueldade do mercado? Um produto elogiado por todos, mas que é abruptamente cancelado.
Foi. E devo confessar que demorei muito tempo a levantar-me. Não sou nada vaidosa como mulher, mas tenho uma grande vaidade nos meus filhos artísticos. Foi tão injusto! Só conseguia pensar “onde é que eu falhei?”.
Nunca encontrou uma resposta?
Tenho as minhas intuições. Acho que, mesmo mundialmente, ainda não é fácil para uma mulher fazer humor.
Ainda subsiste esse preconceito?
Penso que sim. Na prática, sim. Não voltei a ter um programa de humor. Consegui, com a Bola, fazer as “VIP Manicure”, que também foi um programa tirado do ar apesar de ter imensa audiência. Não é fácil. Talvez ainda não se consiga permitir que haja uma boba da corte. Talvez seja uma última instância de machismo que acredita que, à mulher, não pode ser permitido desfigurar-se nem expor-
-se ao ridículo. Talvez, in extremis, um homem tenha medo de uma mulher que seja capaz de fazer humor sobre si própria.
Qual é a personagem da sua vida?
Tenho, pelos meus bonecos, uma coisa quase de animais de estimação. O meu Tintim, se eu fosse o Hergé, é o Zé Manel Taxista. Tenho muito orgulho nele. Continuo a ouvir as suas tiradas e tiques na rua, sobretudo agora que ele voltou à rádio. É uma espécie de Zé Povinho, acarinhado pelos adeptos do Benfica, mas também pelos adeptos dos outros clubes. É um grande orgulho ter criado um boneco que existe para além de mim.
Até porque sempre disse que lhe custa imenso ser a Maria. Ainda?
Já estou mais calejada. Custa-me expor, estar à civil. Os 40 anos serenaram-me bastante. Mas continuo a ser uma romântica, uma lírica. A culpa é da Disney [risos]. Nos amores, como em tudo na vida, sou pouco de ir a jogo por coisas fúteis. Claro que a vida sem amor não tem graça, o amor é o que nos dá o sal, mas tem de ser amor verdadeiro, não são umas coisitas só para ir ao cinema ou ir passar um fim-de-semana fora. Para isso, fico bem com a Maria, tal como sou. Hei-de morrer a roer as unhas, insegura e tímida.