O caso só se tornou público depois de a diocese de Coimbra ter publicado no seu site, na madrugada de ontem, um comunicado enigmático. Assinado pelo vigário--geral, o documento começa por contar que surgiu “em alguns meios a suspeita da prática de abusos sobre menores por um membro do clero” e apela a que quem tenha “informações sobre situações concretas” entre em contacto com a diocese. “Se as suspeitas se revelarem fundadas, a diocese estará disponível para oferecer aos menores e às famílias toda a proximidade”, acrescenta o texto.
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Ao que o i apurou, na origem do comunicado esteve um email anónimo enviado anteontem para uma mailing-list com endereços de padres de todo o país, divulgando um link para o blogue Notícias Região Centro. A página, criada no dia 6 deste mês, é assinada por um “António” e tem um único post publicado. Em “Corrupção na Igreja”, o autor publica fotografias e nomes de vários padres, acusando-os de pertencerem a um “lóbi gay”. Desse grupo “fechado e de fins não totalmente claros”, fará parte um padre com grandes responsabilidades na diocese de Coimbra e que, no ano passado, terá abusado de um rapaz natural da Lousã, a que o autor do blogue chama “João”. Os “abusos”, lê-se no post, terão ocorrido quando o jovem ainda era menor de idade e terão consistido em “palavras e gestos obscenos de cariz sexual”.
O jovem, garante o texto, ter--se-á queixado “a outros padres e até a professores universitários do Instituto Miguel Torga em Coimbra, onde actualmente estuda”. O assunto estará a ser comentado em Coimbra “em voz baixa”.
Foi no seguimento do email que o bispo de Coimbra ordenou a publicação do comunicado na página da diocese. O padre Pedro Miranda, vigário-geral, explica que, devido à “dimensão que o caso tomou em muito pouco tempo”, a diocese decidiu “mostrar-se colaborante ao apuramento da denúncia, não a colocando debaixo do tapete” e seguindo as linhas orientadoras “de Bento XVI e do Papa Francisco”.
Entretanto a Polícia Judiciária (PJ) soube do comunicado e abriu um inquérito para apurar a existência dos supostos abusos de que fala o blogue. Fonte oficial admite, no entanto, que ainda “não foi apresentada qualquer queixa” às autoridades civis.
o “lóbi gay” Além de denunciar os supostos abusos ao rapaz da Lourinhã, “António” conta como existirá um lóbi gay que integra padres de várias dioceses da Região Centro, liderado por um cónego que esteve ligado ao Santuário de Fátima e vive num apartamento em Abrantes – espaço onde organiza “encontros secretos”. Os padres que integram o grupo, conta o blogue, “fazem constantes propostas de cariz sexual, quer pessoalmente, quer por telefone ou via internet, bem como ameaças a menores que vivem com eles no Seminário e que estão sob a sua responsabilidade e a outros que acompanham na formação”. Além disso, “gozam de um elevado status nas suas dioceses, agindo como um grupo de influências e interesses na Igreja portuguesa” e têm “grande força juntos dos bispos, que não conseguem fazer-lhes frente e aparentemente permanecem inactivos em relação a estes casos, abafando-os”.
polémica na igreja Por se tratar de um blogue anónimo, o comunicado está a dividir a Igreja. Alguns padres e bispos com que o i conversou consideram a medida da diocese de Coimbra “precipitada”, sobretudo porque o bispo não ouviu o padre visado na denúncia. Outros aplaudem a “transparência” e sublinham que o tratamento dado ao caso é “absolutamente pioneiro” na Igreja portuguesa, inserindo-se nas linhas orientadoras do Papa Francisco sobre os procedimentos a adoptar em relação aos casos de abusos.
No mês passado, Francisco criou uma secção dentro da Congregação para a Doutrina da Fé para julgar os bispos que encubram casos de pedofilia. Até agora só o Papa tinha poderes para julgar bispos. E, apesar de ainda não terem sido redigidos os procedimentos que devem ser seguidos pela nova secção e as penas a aplicar, a medida já teve consequências: um bispo do México foi destituído recentemente por não ter dado seguimento a denúncias.
e agora? Quando uma denúncia anónima chega a uma diocese, é averiguada a sua credibilidade. Caso pareça verosímil, o bispo deve procurar apurar os factos relatados e comunicá-los às autoridades civis. À luz do direito canónico, são punidos todos os actos sexuais com menores de 18 anos. Já a lei civil portuguesa prevê três tipos de crimes diferentes: abuso sexual de crianças, que abrange menores até aos 14 anos; acto sexual com adolescentes, que engloba menores entre os 14 e os 16 anos; e abuso sexual de menores dependentes, quando os abusos envolvem menores com idades compreendidas entre os 14 e os 18 anos e caso haja uma relação de dependência (educadores).
Caso a denúncia do blogue se venha a confirmar, o padre visado enfrentará um processo canónico – que, no limite, pode determinar o seu afastamento do sacerdócio. Ao mesmo tempo, enfrentará os tribunais civis, arriscando-se a uma pena de prisão que pode ir até um ano, uma vez que o rapaz em causa teria 17 anos à data dos abusos. Já se a denúncia for falsa, será investigada a autoria do blogue e todos os padres visados poderão apresentar queixa por difamação. Ontem o padre envolvido na história dos abusos não quis falar sobre o caso, mas o i sabe que está a ponderar avançar com um processo por difamação contra o autor do blogue.