Fugir da cidade


Pintava quadros, disse-me ele. Gostava dos surrealistas. Tinha alguns expostos num restaurante ali perto. Fui vê-los no dia seguinte – eram medonhos.


Uma vez, estava de férias em Odeceixe e comecei a conversar com o dono de um pequeno bar sobre como tinha sido para ele mudar de Lisboa para ali, a diferença do ritmo, da qualidade de vida, enfim, essas questões que uma garota viciada na cidade mas com um fetiche pela fuga coloca com sincera curiosidade. Ele estava do lado de lá do balcão, bebendo à medida que servia, entusiasmado pela chegada inusitada – porque ainda não era Verão – de pessoas que não as do costume.

Um aparte: uma das pessoas do costume era o Almerindo, um tipo solitário que vivia no largo da vila e que eu conhecera tempos antes ao balcão do tasco menos recomendável da zona. Falámos de Rimbaud, Baudelaire e Vian – eu tinha vinte e poucos anos e aquilo estava a parecer-me uma óptima história para contar.

O que fazia o soturno Almerindo em Odeceixe, quase sempre fechado em casa, com os olhos pendurados e os vasos da cara rebentados pelo álcool? Pintava quadros, disse-me ele. Gostava dos surrealistas. Tinha alguns expostos num restaurante ali perto. Fui vê-los no dia seguinte – eram medonhos.

A vida fora da cidade parecia-me cada vez mais o sonho condescendente de uma burguesinha. No pequeno bar onde conversava com o dono, à medida que ele ia bebendo, a descrição do sonho transformava-se em pesadelo. No início da noite, passear de bicicleta pela costa vicentina era uma “sensação incrível”; no final, “um gajo fica maluco aqui”. A burguesinha meteu o rabo entre as pernas e voltou à cidade, onde as hamburguerias gourmet e as salas de cinema nos distraem da condição humana.

Há anos que não vou a Odeceixe. Mas há uma semana fui a Cabeça da Cabra, perto de Porto Covo, e falei com a Maria, uma rapariga que deixou o emprego, as hamburguerias gourmet e as salas de cinema para se dedicar a um lindo turismo rural onde vende conforto e tempo. Tempo que tem a mais, mas que já não a assusta. Se nos vintes eu tinha deixado de acreditar no sonho bucólico, nos trintas o fetiche ganhou novo fôlego.

Olhei para a Maria com admiração e até com uma certa inveja. Só que, na verdade, que faria eu se tivesse aquele tempo todo? Provavelmente enroscar-me-ia em mim mesma, angustiada por não saber o que fazer. Mas oh, que bom seria ter tempo para isso.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado