Beckenbauer (Alemanha), Eusébio (Portugal), Figueroa (Chile), Romero (Paraguai) e Petkovic (Sérvia). Alcides Ghiggia é apenas o sexto estrangeiro, e o 100.º jogador, a deixar a sua marca na Calçada da Fama do Maracanã, o estádio mais conhecido do mundo, cujo museu não tem qualquer registo relativo à final do Mundial-50, perdida pelo Brasil para o Uruguai (2-1). Com um golo de quem? Ironia das ironias, de Ghiggia. Ironia das ironia, o herói morre hoje aos 88 anos no preciso dia do 65.º aniversário do Maracanazao.
Vai daí, deixamos-lhe a entrevista do i a Ghiggia em 2010, por ocasião do Mundial desse ano na África do Sul. A partir daqui… Hoje com 83 anos, o fabuloso extremo-esquerdo vive tranquilamente em Montevideu, como qualquer outro comum mortal, sem mordomias nem manias. É um herói simples. Como todos o deviam ser. Por telefone, Ghiggia fala do seu tempo.
Já passaram 60 anos do Maracanazo. Do que se lembra ainda daquele 16 de Julho de 1950?
Primeiro, começo pelo dia 15. Na véspera da final, três dirigentes da federação uruguaia reuniram-se connosco, com os jogadores, para nos dizer que tínhamos cumprido o nosso papel, que tínhamos jogado limpo e que se o Brasil não nos fizesse mais de três ou quatro golos já se podia considerar uma vitória. Você pode estranhar agora esta situação mas naquela altura era assim. O Brasil jogava em casa, no imponente Maracanã, e era uma autêntica máquina de futebol, com goleadas atrás de goleadas [4-0 ao México, 7-1 à Suécia e 6-1 à Espanha].
Mas então foi com esse espírito que entraram em campo?
Não, não. O nosso capitão, Exmo. Obdulio Varela, é que nos deu a táctica. Mais uma vez digo, você pode estranhar mas antigamente era assim. Havia o seleccionador e depois o capitão, que era quem dava a táctica.
E o que ele fez?
No túnel de acesso ao relvado, enquanto os brasileiros entravam em campo, juntamente com os árbitros, ele travou-nos e disse-nos o seguinte: ‘Esqueçam tudo o que ouviram. Aqueles [dirigentes] não percebem nada disto. E esqueçam tudo o que ouvirem daqui em diante, durante 90 minutos. Os de lá fora são postes. Não lhes liguem. Nós só cumprimos o nosso papel se ganharmos. Se sairmos daqui como campeões do mundo, cumprimos o sonho do nosso povo e é para ele que jogamos. Portanto, temos de fazer um sacrifício para dar uma alegria aos uruguaios.’ Foi isso que ele disse.
E depois?
O ambiente era cem por cento brasileiro. A eles, bastava-lhes o empate. A nós, só a vitória servia para ganhar o Mundial [foi a única vez que houve uma fase de grupos para decidir o campeão, no sistema de quatro equipas, todos contra todos].
E no início da segunda parte o Brasil fez o 1-0.
Exactamente, por Friaça. Enquanto os brasileiros entraram em convulsão, numa histeria colectiva sem fim, o Varela foi buscar com a maior das calmas à nossa baliza e saiu de lá a bater a bola no chão, rumo ao meio-campo. Ao passar pelos companheiros, eu incluído, ia dizendo: ‘Isto só começou agora. Eu ainda quero ir festejar o título em Copacabana. Acompanham-me?’
E?
E que nos superiorizámos a nós mesmos. Marcámos dois golos, um pelo Schiaffino [58’] e outro meu [79’], em que o remate sai-me rasteiro e potente, entre o poste e o guarda-redes [Moacir Barbosa]. Bem, nunca vi um silêncio assim. Eram mais de 200 mil almas caladas, caladinhas, sem se mexer.
A culpa é sua.
Uma vez aos jornalistas brasileiros que só três homens silenciaram o Maracanã: o Papa, Frank Sintra e eu. Portanto, sim, declaro-me culpado! Não só baralhei os brasileiros, como ainda obriguei o Jules Rimet [dirigente francês, presidente da FIFA e cérebro da criação de um Mundial de selecções] a fazer um caminho inesperado.
Porquê?
Para não correr riscos, ele [79 anos] desceu para o relvado quando ainda havia 1-1, escoltado pela polícia. Quando chegou ao relvado, já não estava lá nenhum jogador. Por isso é que recebemos a taça no nosso balneário. Foi a primeira e a única vez.
Antigamente é que era engraçado. Não havia protocolo…
Mas havia amor à camisola, coisa que agora olhe que é difícil de ver, todos têm medo de meter o pé, porque ganham um balúrdio dos clubes. Mas havia determinação, coisa que agora olhe que não se vê. Mas havia futebol-espectáculo, coisa que agora é uma raridade porque todos os jogos acabam com 0-0, 1-0, 1-1 ou 2-1.
Antigamente, havia extremos como o Ghiggia. E agora?
Pufff, raro, raríssimo. Gosto do Cristiano Ronaldo e daquele francês.
Ribéry?
Esse mesmo. Mas fico-me por aí. Os extremos já não são extremos. São pseudo-estrelas, mais comerciais que futebolistas. Sem alma nem amor à camisola. Insisto neste ponto.
E os adeptos, também perderam o encanto?
Eu julgava que sim, mas há quatro anos fui ao Maracanã meter o meu pé na calçada da fama. Aterrei no Rio de Janeiro e uma menina-polícia dos seus 20 anos revistou-me o passaporte e atirou-me: ‘Você é O Ghiggia?’ Eu fiquei a olhar para ela a ver se lhe via alguma ruga e nada. Perguntei-lhe como é que sabia isso se o Maracanazo tinha sido há 56 anos. E ela respondeu-me: ‘Não, todos nós ainda sentimos que esse jogo foi hoje.’”