Política e justiça


Os que trabalham para a justiça não podem descurar as consequências políticas das suas acções.


1. Em virtude dos muitos casos judiciais que, cada vez mais, dizem respeito a questões fundamentais que globalmente afectam a sociedade, têm os responsáveis políticos, e em alguns casos sustentado os responsáveis pela justiça a máxima de que “cabe à justiça o que é da justiça e cabe à política o que é da política”.

Com isso querem realçar a autonomia das respectivas esferas de acção. Dita e escrita desta maneira lapidar, tal frase parece não merecer contestação possível; é assim mesmo.

Tratando-se de casos que, do ponto de vista judicial, apenas podem ser analisados na perspectiva da responsabilidade pessoal, a verdade é que, quando afectam globalmente a sociedade, nunca deixam de ser observados no contexto político e institucional em que ocorrem.

Ou seja, a sociedade não pode – nem quer – contentar-se com uma redução de tais casos ao apuramento de responsabilidades pessoais; tende a procurar saber como e em que circunstâncias políticas foi possível que eles tivessem ocorrido.

Nesta perspectiva, o que é da justiça não pode, mesmo que noutro plano, deixar de interessar à política e aos que desenvolvem qualquer actividade civicamente empenhada.

Estes não podem, pois, deixar de reflectir seriamente sobre tais factos – objectivos e subjectivos –, pelo menos na medida em que retratam as condições institucionais, económicas e sociais que permitiram ou propiciaram a sua ocorrência.

2. Por outro lado, os que trabalham na justiça – seja nos escalões iniciais, seja, por maioria de razão, nos escalões superiores – não podem descurar as consequências políticas das acções da justiça.

Com efeito, porque a justiça não é exercida num plano metafísico, antes age no plano concreto da vida social, as acções que protagoniza produzem inevitáveis efeitos sobre a vida política da sociedade.

Vista deste ângulo, a frase de que “cabe à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” pode perder parte da sua eficácia e capacidade de explicar o problema que pretende resolver.

Os valores que importam e devem nortear a acção da justiça têm de ser os mesmos que orientam e justificam a acção política e devem transformar a sociedade.

Recordemos, aliás, que as leis que a justiça deve fazer cumprir, ou cuja violação deve fazer punir ou compensar, nascem na verdade de iniciativas políticas dos parlamentos ou dos governos: os valores que estas veiculam são os valores que os representantes políticos entenderam como bons.

Ora se esta observação é correcta do ponto de vista da exigência que todos devemos reivindicar à política, não é menos necessária quando observamos a acção da justiça ou a dos seus responsáveis.

Os valores que as leis substantivas ou processuais veiculam nunca são – nem podem ser – estanques e cegos, sob pena da sua própria negação.

As leis não se limitam a ser tábuas de valores absolutos, mas – mais exactamente – sistemas complexos, confluentes ou conflituantes de valores e princípios que importa saber respeitar e ordenar para que da sua aplicação não resulte o contrário do que a sociedade, através da política, pretende exprimir e preservar.  

Quando esse equilíbrio é afectado, é a própria maneira de viver que a sociedade democraticamente escolheu como sua que fica em causa.

A acção da justiça, se rompe ou dá a ideia de que rompe tal equilíbrio, passa, pois, a ser considerada também essencialmente política e perde, por tal, a eficácia da sua sempre relativa e frágil autonomia.

Jurista. Escreve à terça-feira   

Política e justiça


Os que trabalham para a justiça não podem descurar as consequências políticas das suas acções.


1. Em virtude dos muitos casos judiciais que, cada vez mais, dizem respeito a questões fundamentais que globalmente afectam a sociedade, têm os responsáveis políticos, e em alguns casos sustentado os responsáveis pela justiça a máxima de que “cabe à justiça o que é da justiça e cabe à política o que é da política”.

Com isso querem realçar a autonomia das respectivas esferas de acção. Dita e escrita desta maneira lapidar, tal frase parece não merecer contestação possível; é assim mesmo.

Tratando-se de casos que, do ponto de vista judicial, apenas podem ser analisados na perspectiva da responsabilidade pessoal, a verdade é que, quando afectam globalmente a sociedade, nunca deixam de ser observados no contexto político e institucional em que ocorrem.

Ou seja, a sociedade não pode – nem quer – contentar-se com uma redução de tais casos ao apuramento de responsabilidades pessoais; tende a procurar saber como e em que circunstâncias políticas foi possível que eles tivessem ocorrido.

Nesta perspectiva, o que é da justiça não pode, mesmo que noutro plano, deixar de interessar à política e aos que desenvolvem qualquer actividade civicamente empenhada.

Estes não podem, pois, deixar de reflectir seriamente sobre tais factos – objectivos e subjectivos –, pelo menos na medida em que retratam as condições institucionais, económicas e sociais que permitiram ou propiciaram a sua ocorrência.

2. Por outro lado, os que trabalham na justiça – seja nos escalões iniciais, seja, por maioria de razão, nos escalões superiores – não podem descurar as consequências políticas das acções da justiça.

Com efeito, porque a justiça não é exercida num plano metafísico, antes age no plano concreto da vida social, as acções que protagoniza produzem inevitáveis efeitos sobre a vida política da sociedade.

Vista deste ângulo, a frase de que “cabe à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” pode perder parte da sua eficácia e capacidade de explicar o problema que pretende resolver.

Os valores que importam e devem nortear a acção da justiça têm de ser os mesmos que orientam e justificam a acção política e devem transformar a sociedade.

Recordemos, aliás, que as leis que a justiça deve fazer cumprir, ou cuja violação deve fazer punir ou compensar, nascem na verdade de iniciativas políticas dos parlamentos ou dos governos: os valores que estas veiculam são os valores que os representantes políticos entenderam como bons.

Ora se esta observação é correcta do ponto de vista da exigência que todos devemos reivindicar à política, não é menos necessária quando observamos a acção da justiça ou a dos seus responsáveis.

Os valores que as leis substantivas ou processuais veiculam nunca são – nem podem ser – estanques e cegos, sob pena da sua própria negação.

As leis não se limitam a ser tábuas de valores absolutos, mas – mais exactamente – sistemas complexos, confluentes ou conflituantes de valores e princípios que importa saber respeitar e ordenar para que da sua aplicação não resulte o contrário do que a sociedade, através da política, pretende exprimir e preservar.  

Quando esse equilíbrio é afectado, é a própria maneira de viver que a sociedade democraticamente escolheu como sua que fica em causa.

A acção da justiça, se rompe ou dá a ideia de que rompe tal equilíbrio, passa, pois, a ser considerada também essencialmente política e perde, por tal, a eficácia da sua sempre relativa e frágil autonomia.

Jurista. Escreve à terça-feira