Há quem diga que “A Educação Sentimental” é a obra-prima de Flaubert. Se calhar é, mas eu não acho, nem o livro me entusiasmou muito, talvez porque o tenha lido na altura errada ou porque antes já lera tantas outras formas de contar os mesmos desenganos amorosos, a mesma hipocrisia social, as mesmas contradições que definem os homens e as mulheres de tantos romances, em especial aqueles que tomam por protagonista alguém a estrear-se na idade adulta.
A vida e a literatura estão cheias de Fredericos, e convenhamos que há páginas mais empolgantes (e mais breves) que aquelas em que Flaubert põe Frédéric de cá para lá entre a senhora Arnoux e a Marechala.
É apenas quando o livro (na segunda parte) descreve o estertor do reinado de Luís Filipe e a agitação revolucionária de 1848 em França que me entusiasmo realmente, e aí sim, a ironia fina, elegante e melancólica de Flaubert é de antologia. Enquanto a revolução avança, Frédéric continua a sua vida no essencial, e quase toda a gente realmente continua a viver na mesma, mais coisa menos coisa.
Há momentos de arroubo, de sonho e de indignação, como aquele em que Frédéric se indigna com a actuação da polícia na Praça Concorde, mas depressa decide ficar mudo e quedo, não vá sofrer algum contratempo que o impeça de ir ao encontro da senhora Arnoux. Tudo serena rapidamente e as coisas, mesmo mudando, ficam nos seus lugares e nos seus eixos, como sabia o sagaz Tancredi, personagem de outro livro cheio de melancólica ironia. A
pacatez burguesa da vida de Frédéric continua. E é a Marechala quem lhe dá a certeza de que nada verdadeiramente sofrera grande alteração: “Depois Frédéric foi ter com a Marechala. […] tudo estava tranquilo, não havia nenhuma razão para ter medo; beijava-a; e ela declarou-se pela República, tal como já fizera Monsenhor, o arcebispo de Paris, e tal como deviam vir a fazer com uma presteza de zelo maravilhosa, a magistratura, o Conselho de Estado, o Instituto, os marechais de França, Changarnier, o senhor de Falloux, todos os bonapartistas, todos os legitimistas, e um número considerável de orleanistas.”
Costuma ser assim. Tudo continua bem e no seu sítio. E nada melhor para o espelhar que, umas dezenas de páginas adiante, o jantar na casa dos Dambreuse, onde todos se aquietam após os sustos revolucionários e onde o tio Roque pode repousar os nervos depois de ter morto um jovem prisioneiro à queima-roupa.
Na sala de jantar é possível reencontrar a tranquilidade e apreciar as delícias que se oferecem na mesa engalanada para o repasto – as melhores frutas, uma dourada, cabrito e lagostins, tudo posto em boa loiça e em cestas de Saxe antigo. “Ora bem, esperemos que os senhores republicanos nos permitam jantar!” , diz um conviva. “Apesar da sua fraternidade!”, observa espirituosamente o tio Roque. Pois bem, o que é preciso é jantar. Isso e, já agora, gozar outros prazeres, como os disponíveis na casa da Turca. Mas – claro – só depois de um bom jantar.
Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado