A tolerância da esquerda com a diferença e a doença é comovente. Já sabíamos que são incontestável património da esquerda temas como pobreza, ambiente, cultura e grupos que tenham em comum serem minorias (desde que exóticas).
Ser de esquerda, nos dias de hoje, é estar sentado num sofá, numa sala decorada ao estilo minimalista, a assistir ao “Borgen”, a beber um gin tónico cheio de folhas e bolinhas lá dentro e, no intervalo da série, discursar com a companheira ou companheiro sobre cultura, ambiente, desigualdades sociais e minorias (exóticas).
É assim desde que a esquerda é esquerda chique e, numa época mais recente, desde que o PSR inovou o espaço público – vulgo muros – com desenhos giros de carneiros para ilustrar o inimigo comum – vulgo os outros.
Têm sido tempos penosos, mas todos sobrevivemos ao crescimento desta esquerda mordaz, folclórica e vazia sem grandes indigestões. Até que a moda alastrou ao centro e hoje o PS, encalhado numa espécie de complexo social, se rendeu aos encantos desta forma de fazer política.
Os comediantes e os espectáculos podem agora ser vistos em vários palcos que vão desde a blogosfera ao plenário da Assembleia da República. Sim, temos estoicamente sobrevivido a tudo isto sem grandes sobressaltos.
A indigestão deu-se esta semana. Esta semana, Laura Ferreira, mulher do primeiro-ministro da maioria de direita – o tal que vai todos os dias para casa magicar planos sádicos para roubar dinheiro às pessoas, tornar os pobres mais pobres, vender o país ao estrangeiro, expulsar portugueses e que, ainda por cima não tem ar de gostar de gin com folhas e bolinhas –, dizia eu que a mulher do primeiro-ministro se deixou fotografar numa visita oficial sem uma peruca ou um lenço para esconder os efeitos da quimioterapia a que tem sido sujeita.
E, pasme-se, a esquerda indignou-se. Sim, a esquerda das minorias (exóticas, é verdade), dos desprotegidos, dos mais frágeis, acha – aliás, tem a convicção profunda – que Laura Ferreira só pode aparecer em público disfarçada, escondendo o cancro e sem aparentar qualquer vestígio de que está a fazer um tratamento doloroso.
Porquê? Porque não escondendo está a provocar uma onda de sensibilização e isso não é mais do que um instrumento político para ajudar o marido a ganhar votos. Logo, o primeiro--ministro está a usar o cancro da mulher para ganhar votos. Sim, chegou o dia da indigestão. Do vómito, mesmo.
A esquerda tem o problema de achar que o mundo pensa como ela: através de um copo de gin. Esta esquerda gosta de falar das minorias (exóticas, é certo), da pobreza e da doença, mas na medida em que a pobreza, a doença e as minorias sejam conceitos e não pessoas. E Laura Ferreira, por ter casado com quem casou, está automaticamente excluída do conceito e não pode fazer parte do grupo de pessoas que comovem a nossa esquerda.
Assim como o ministro das Finanças alemão, que por ser alemão, ser das Finanças e de direita, também não faz parte do grupo de pessoas com deficiência que comovem a esquerda e até pode ser satirizado com a sua cadeira de rodas, como fez António no “Expresso” da semana passada.
Laura Ferreira tem um cancro, tem um cancro e não tem medo, vaidade ou vergonha de mostrar que o tem. Quando a esquerda de Estrela Serrano, dos blogues e de outras personalidades de referência vê um asqueroso aproveitamento político onde só há coragem, isto não só revela o tamanho da sua hipocrisia, intolerância e incoerência, como, pior ainda, revela até onde pode chegar o pensamento estratégico desta gente.
E se Passos Coelho fosse de esquerda, será que a sua mulher já podia aparecer sem lenço?
Escreve ao sábado