As manchas de terra na camisola rasgada denunciam um dia em cheio. “Estive a brincar à guerra”, explica Maria ao mesmo tempo que se descalça e troca de roupa. Apesar de se pôr mais à vontade, sabe que há uma peça que nunca pode tirar e que já funciona como se fosse parte de si. A bolsinha colorida presa à cintura e que se adapta aos seus cinco anos esconde uma bomba de insulina que, ao longo do dia, lhe vai dando as doses para a manter estável.
Há dois anos, Ana começou a desconfiar da fome e sede persistentes da filha, além do xixi na cama quase diário. O diagnóstico não tardou a confirmar as suspeitas: diabetes tipo 1. “Não é fácil explicar a uma criança que vai ter de levar injecções de insulina diariamente”, conta, admitindo, por outro lado, a “incrível capacidade de adaptação” de uma criança. Maria sabe o que tem, sabe explicar aos outros o seu problema e já não se queixa das picas no dedo que se multiplicam pelo número de refeições.
Cães treinados Ana reconhece que a adaptação de Maria à doença foi bastante natural. Mas esta facilidade não a fez descansar. Quis saber tudo sobre a doença e ficar a par das ferramentas que poderiam tornar o dia-a-dia da filha o menos penoso possível. Depois de alguma pesquisa online, descobriu que nos Estados Unidos existem cães treinados para acompanhar crianças com diabetes que detectam os momentos de variação dos valores da insulina.
Fez-se luz na cabeça de Ana, mas quase se apagou quando percebeu que em Portugal este método ainda não era aplicável. Mandou vir um exemplar norte--americano para Maria, mas não achou que isso fosse suficiente. Em parceira com o treinador de cães Rui Elias criou, em Dezembro do ano passado, a Associação Portuguesa de Cães de Assistência, a única entidade em Portugal a certificar os chamados medical dogs – cães vocacionados para acompanhar pessoas com deficiência sensorial e orgânica, como é o caso do autismo, epilepsia, diabetes ou deficiências motoras.
A associação Com mais de um milhão de portugueses a sofrer de diabetes, não admira que o caso de Maria seja o que tem despertado mais interesse e, como consequência, a par do autismo, lidera a lista de doenças para as quais são pedidos mais animais de assistência. Rui explica que treinar um cão até que esteja apto a acompanhar um doente diariamente pode demorar um ano e meio e custar perto dos dez mil euros. “Parece um valor alto, mas é bom lembrar que em Espanha custa 15 mil euros, e nos EUA 27 mil”, explica.
Enquanto fala, Rui vai passando a mão pelos cães de diferentes tamanhos e cores que lhe vão passando entre as pernas e pedem a atenção que lhes é natural, mesmo para quem tem uma disciplina rígida. “Grace” não esconde a genica típica de um cachorro de dois meses mas, em troca de um bocadinho de ração, mostra o último truque que aprendeu: fechar portas. “Quando o treino estiver completo, a ‘Grace’ vai acompanhar um deficiente motor e, por isso, vai saber levar o lixo, tirar meias, trazer os sacos de compras ou apanhar o comando do chão”, explica Rui.
Já o “Duke”, um pastor-alemão com um porte de meter respeito, está treinado a acompanhar crianças com autismo e consegue manter-se impávido perante as chamadas de atenção de “Bel”, uma Labrador de três meses, que disputa com “Ben” – o Labradoodle que chegou há três dias dos Estados Unidos – o lugar de acompanhante permanente de Maria: “Por um lado, temos um cão já treinado; por outro, temos a hipótese de ter a Maria a crescer em simultâneo com o animal que a vai acompanhar.”
Ana admite a hipótese de ficar com os dois cães, mas tudo vai depender da adaptação da filha aos animais. Se dúvidas existissem, ficavam dissipadas ao ver Maria a rebolar na relva entre lambidelas e saltos descoordenados com os dois animais. “É mesmo provável que fiquemos com os dois”, acaba por admitir.
Cheirar a diabetes Apesar de Maria já ter lanchado na escola e de a hora do jantar ainda estar longe, Ana tem de fazer uma pica de despiste. A filha sobe para o banco que a deixa ao nível da mesa da cozinha e estica o dedo, num gesto automático. “127, tudo normal”, conclui a mãe, aproveitando para lembrar que os valores ditos normais variam entre os 80 e os 140. Quando os cães estiverem aptos a acompanhar a doença de Maria, vão poder substituir estas medições a meio do dia: “É que, aparentemente, ela está bem, mas só a pica me diz os valores reais.”
A experiência de três dias de convívio já servem para que Maria saiba que o cão, além de uma companhia, vai ser principalmente uma ajuda no dia-a-dia. “Vai andar sempre comigo e vai até saber acordar-me para eu acordar a minha mãe.” Aliás, 48 horas depois de chegar a casa, “Ben” deu o primeiro alerta. “Começou a ganir até eu chegar ao pé da minha filha.” Feito o teste, provou-se que tinha razão: os valores de glicemia estavam nos 80. “Ter o cão connosco vai ser uma grande ajuda e, além disso, é muito mais divertido que uma máquina”, acrescenta Ana.
Se a Labrador “Bel” está a ser treinada de raiz e tem de passar ainda por aulas de obediência, treino específico para a diabetes e aprender a interagir com a Maria, o Labradoodle – uma mistura de Labrador com Poodle que dá origem a uma raça com um olfacto superapurado – tem apenas de saber reconhecer quando os valores de glicemia não são normais. Para aprender, tem de cheirar várias amostras por dia, para conseguir identificar aquelas que fogem dos níveis recomendados.
Controlar valores entre os 80 e os 140, picar o dedo pelo menos seis vezes por dia, contar o açúcar consumido para saber a dose de insulina a administrar à Maria, fazem de Ana uma especialista. “Em números”, brinca. “Passo o dia a fazer contas.” Prova disso é o placard com uma regra de três simples escrita a giz. Se uma pizza tem 25 gramas de hidratos, quanto terá uma fatia? É só fazer a conta para calcular a próxima dose de insulina.