Dia 22 de Junho. João Coutinho veste uns jeans e um blazer sobre uma singela T-shirt – lisa, não a dos Beastie Boys que viria a usar uns dias mais tarde – e prepara-se para o primeiro dia de entrega de prémios no festival Cannes Lions 2015. O director criativo da Grey New York tinha a concurso a sua mais recente campanha, “Guns With History”, feita para a associação States United To Prevent Gun Violence. Três horas depois, a cerimónia terminava e João trazia já consigo seis Leões. “Se o festival acabasse nesse dia, voltava para casa mais que feliz.” Mas não acabou.
27 de Junho. Último dia de festival. O número de Leões que a campanha “Guns With History” arrecadara já ia em 12. Mas ainda não estava fechado. E até ao final do dia voltou a subir: 14. Foram 14 os Leões que este homem do Porto conquistou.
Olhar para o currículo de João Coutinho é coisa para nos deixar algo zonzos. Em 20 anos de trabalho, desde o arranque, como estagiário, na Ogilvy Lisboa, a montra de campanhas, clientes e prémios é avassaladora. E esta passagem por Cannes, a segunda, só veio confirmar o que já se sabia. “A primeira vez foi marcante, mas desta foi especial. Por várias razões. Era importante para mim voltar a ganhar e ganhar com expressão, provar que a primeira vez não foi obra do acaso. Triunfar em dois mercados supercompetitivos, como o brasileiro e o americano, é um facto de relevo. Foi uma excelente semana em todos os aspectos, menos para o fígado”, brincou.
Quando fez as malas para Cannes, João Coutinho arrumou também uma dose de expectativas. Era inevitável. “Guns With History” chegou ao festival com a indicação, por vários meios especializados, de que iria ser das campanhas mais premiadas. E foi. Com 7 Leões de Ouro e 7 de Prata, “Guns With History” foi fundamental para que a Grey New York atingisse o segundo lugar do ranking das melhores agências do mundo. Os Leões, esses, tiveram de ser divididos pelos vários funcionários da Grey, de forma a evitar o excesso de bagagem. É que cada um pesa cinco quilos.
Doar órgãos
Dois mil e treze, a última vez que João Coutinho tinha marcado presença em Cannes, tinha sido um ano de viragem, ao ganhar 35 Leões com a campanha “Fãs Imortais” e ajudar a Ogilvy Brasil a ser Agência do Ano.
A campanha em questão partia da ideia de que os adeptos do Sport Club do Recife eram considerados a torcida mais aguerrida do Nordeste brasileiro, com cânticos onde chegam a gritar: “Tudo pelo Sport, mesmo depois da morte.” Foi esta a frase que ficou a ecoar na cabeça de João Coutinho até chegar a uma conclusão aparentemente simples: “Porque não imortalizar essa paixão, doando órgãos?” Com a campanha “Fãs Imortais”, cada adepto do Sport que aderisse passava a possuir um cartão de doador em que informava a família dos seus desejos de doação de órgãos, agilizando o processo. O resultado foi avassalador: num ano, mais de 50 mil pessoas do estado de Pernambuco fizeram o cartão de dador. “O meu novo coração baterá sempre pelo Sport”, ouvia-se num dos vídeos da campanha. “Fiz uma campanha que salvou vidas. Posso reformar-me”, confessou João, à data. Era fácil imaginar que tão cedo não voltaria a passar por emoções semelhantes. Mas estava enganado.
No país onde faz parte da educação o pai levar os filhos a atirar numa carreira de tiro ou disparar contra latas e garrafas no quintal, onde as armas são herança de família e a segunda emenda dá aos cidadãos o direito de terem armas para se defenderem, João Coutinho criou para a States United To Prevent Gun Violence, um cliente pro bono da Grey, a campanha “Guns With History”. “O nosso raciocínio foi: como é que podemos alertar as pessoas que, ao comprar uma arma, ela carrega riscos? Todos os dias há acidentes fatais com armas de fogo, para não falar nos massacres nas escolas e nos suicídios.”
Juntamente com o seu dupla [expressão usada em publicidade e que diz respeito a dupla criativa, geralmente constituída por um director criativo e um copywriter], o brasileiro Marco Pupo, montou uma loja de armas de fogo no centro de Manhattan, estado de Nova Iorque, onde a sua venda é proibida. Lá dentro, cada uma delas tinha uma etiqueta onde era apresentado o seu currículo: desde o revólver que uma criança de cinco anos encontrou no quarto dos pais e com o qual, acidentalmente, matou o irmão de nove meses, à espingarda usada para matar 21 jovens e ferir outros 19 num restaurante de fast food. A ideia foi que, demonstrando que “Every gun has a history. Let’s not repeat it”, se combateria a noção, defendida por seis em cada dez americanos, de que ter uma arma torna um lar mais seguro.
Em menos de uma semana, “Guns With History” atingiu cerca de 12 milhões de visualizações e arrecadou o apoio de figuras como Jim Carrey, Mia Farrow e Piers Morgan, tendo inclusive sido referida no site Obama Diaries. E se, por um lado, o lóbi das armas se revoltou contra a campanha e os seus autores, também houve palavras de apoio que João Coutinho não esquecerá: “Recebemos um email de um sobrevivente de um massacre numa escola a dizer que tinha ficado muito sensibilizado com a campanha e que isto podia mudar mentalidades.”
Adeus aos legos
Natural do Porto e portista dos quatro costados, em criança, João Coutinho gostava de brincar com legos e talvez isso o tenha levado a pensar que seria arquitecto. Mas a série televisiva “Os Trintões” – sobre dois amigos que trabalhavam numa agência de publicidade – e o programa “1000 Imagens” trocaram-lhe as voltas. Arrumou os legos e inscreveu-se no curso de Publicidade, na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e logo no segundo ano criou, com dois amigos, a Zoo Publicidade. Quando, em 1996, terminou o curso, mudou-se para Lisboa para trabalhar na Ogilvy. Com o amigo Tiago Guedes conquistou o prémio do primeiro concurso de Jovens Criativos e o primeiro Grand Prix do Clube de Criativos de Portugal. Ainda nem dois anos de experiência tinha.
Depois de quase 15 anos a trabalhar em Lisboa e de uma breve passagem por Madrid, João Coutinho está desde 2011 a trabalhar na Liga dos Campeões. Foi nesse ano que se mudou para a Ogilvy de São Paulo. “Decidi ir para o Brasil à beira dos 40 anos. Podia ter pendurado as botas, tinha um bom cargo em Lisboa, mas a zona de conforto é algo que me incomoda. No princípio, é certo, estava super-inseguro. Fui para um país com grande tradição na publicidade. Saí de uma agência com dez criativos e fui para uma com 100. No primeiro briefing disseram-me para ter cuidado porque era low budget: um milhão de dólares. Em Portugal, a campanha mais cara que fiz custou 500 mil euros.”
Quando a campanha “Fãs Imortais”, para o Sport Club do Recife, saiu de Cannes vencedora, os convites começaram a chover. EUA, Londres, Brasil, Espanha, Dubai… Escolheu a Grey New York, cidade onde, por agora, tenciona continuar. “Sou feliz na Grey e na cidade, mas nunca se sabe. Los Angeles ou Londres são duas cidades onde gostaria de morar a seguir a Nova Iorque e antes de voltar para Portugal”. Sim, porque João continua a pensar no momento em que voltará ao seu país.
ADN português
João Coutinho não foi o único nome português que se ouviu em Cannes. Susana Albuquerque, directora criativa da agência espanhola Tapas Y&R, conquistou quatro Leões; Carlos Matias, da AKQA Londres, somou seis; Vasco Vicente, da W+K de Amesterdão, outros seis; Paulo Martins, da 72andSunny de Amesterdão, ganhou três; e Ricardo Adolfo, da Ogilvy Japão, arrecadou um Leão, tal como Nuno Pestana Teixeira, da TBWA Singapura.
No total, a criatividade com ADN português somou 35 Leões. Em contrapartida, as agências nacionais trouxeram para casa apenas um Leão, através da campanha “Stiletto”, da Publicis Lisboa, para o Renault Twingo. E o segundo lugar no Young Director Awards, prémio que distingue o talento de realizadores que não ultrapassem os três anos de experiência e que foi entregue a Rogério Serrasqueiro, pelo filme “Stop”, para a SOS Racismo.
É inevitável perguntar: o que acontece para que as agências portuguesas não sejam distinguidas num dos melhores anos para o talento nacional? A resposta mais imediata será “dinheiro”. Mas pode não ser assim tão simples. “O dinheiro ou a falta dele influem negativamente, mas não são a única culpa do insucesso. Falta ambição e critério na maior parte das agências portuguesas. Não existem estruturas para ganhar prémios em grande escala. Não basta querer, é preciso fazer.
Isso exige muito sacrifício da vida pessoal da parte de quem faz e algum dinheiro, critério e exigência da parte de quem gere”, explica João Coutinho. Que é como quem diz: quem quer ganhar Leões, tem de se preparar para a selva. E parece ser isso que permite aos criativos portugueses emigrados vencerem e chegarem a patamares de excelência – como o caso de Hugo Veiga que, em 2013, assinou a campanha “Retrato da Beleza Real”, para a Dove. Venceu 22 Leões e foi considerada a melhor do mundo pela revista “Time”.
Estes homens – e mulheres – não são Don Drapers. Mas a vida deles é a publicidade. É o que respiram, o que sonham, o que lhes tira o sono. E não é só a eles. É aos amigos, à família, aos que os rodeiam. “Tenho muito orgulho na família que tenho. A minha mãe sempre me apoiou e não desistiu de mim quando, no 10.o ano, quis mudar de arte e design para economia. Insistiu que fizesse vários testes psicotécnicos para me provar que estava errado e que o meu futuro passava por alguma coisa ligada às artes. Quando decidi seguir publicidade, soube que era a escolha acertada. O meu padrasto, com quem vivi desde os sete anos e sempre me tratou como filho, ensinou-me o que é ser boa pessoa. O meu pai sempre foi a minha inspiração, com os seus conselhos e um sentido estético fabuloso. A minha avó materna foi o pilar da família. Sem uma família que nos entenda e apoie, sem uma base sólida, não se vai a lado nenhum. A minha família tem um papel importantíssimo nesta caminhada. A minha mulher sempre me seguiu para onde fui, sempre apoiou as minhas decisões. É a minha grande conselheira. Dedica a sua vida a mim e aos nossos filhos. Trata de tudo para que eu me possa focar a 100% no trabalho. Tem paciência comigo, com os meus stresses, noites longas e fins-de-semana. Somos pais, amantes e amigos. Como todos os casais, temos as nossas brigas, mas no fim de tudo somos felizes e apaixonados.” Foi por isto que João Coutinho, no dia seguinte ao fim do festival de Cannes, rumou a Portugal – onde já estava a mulher, Rita, e os dois filhos – com um Leão de Ouro na mala. Os gémeos João e Olívia tinham acabado de ganhar um presente – ainda que por empréstimo, já que os troféus são todos propriedade da agência e cada criativo que queira guardar um tem de encomendar uma réplica, que pode custar entre 1135 e 2575 euros. A foto da praxe resumia tudo: “A leoa e os leõezinhos. Estes prémios todos vão para a melhor mulher e melhores filhos do mundo.”