A voz humana. Uma história de sete anos de amizade com a antiga primeira-dama

A voz humana. Uma história de sete anos de amizade com a antiga primeira-dama


Vladimiro Nunes, o autor da mais completa biografia de Maria Barroso, conta na primeira pessoa a história dos seus sete anos de amizade com a antiga primeira-dama.


Habituado, pelas regras do ofício, a refrear a escrita no distanciamento jornalístico, é-me estranho escrever na primeira pessoa. Só que este texto é diferente, ainda que também pudesse começar com a secura brutal dos factos definitivos: “Morreu Maria Barroso.” O país despede-se da actriz inspirada, da mestre-escola e pedagoga, da combatente pela liberdade, da ex-primeira-dama, da cidadã exemplar cuja voz serena mas firme defendia muitas causas que podem ser resumidas numa: o humanismo. A família despede-se da companheira irredutível, da mãe-coragem, da agregadora de todas as sensibilidades e temperamentos. Eu despeço-me de uma amiga leal e generosa, cuja vida tive o privilégio de conhecer bem e registar em letra de forma.

Conheci Maria Barroso em 2008, quando José António Saraiva, director do “Sol”, jornal onde trabalhei até 2012, me desafiou a preparar um “álbum de memórias” da ex-primeira-dama, a ser editado com o semanário. Pela minha parte, aceitei o desafio. Restava saber o mais importante: se Maria Barroso também o aceitaria. Nunca nos tínhamos cruzado nem eu tinha ideia de como contactá-la para lhe apresentar a proposta. Sabia-a, no entanto, presidente de uma fundação de direitos humanos, a Pro Dignitate, e segui o raciocínio mais óbvio: um telefonema a expor o assunto ao seu secretariado, à espera de que, com sorte, a minha possível futura biografada acedesse a receber-me. Com uma facilidade que me surpreendeu, marcou-se o encontro. Começava assim uma odisseia que ainda não terminou.

No dia combinado dirigi-me à fundação, instalada no antigo Convento da Estrela, sem saber o que esperar. Sempre simpática, Lurdes Fonseca, a dedicada secretária de Maria Barroso, conduziu-me à Sala da Rainha, onde a “dra. Maria de Jesus” me aguardava. Era uma divisão ampla, decorada com mobiliário sóbrio que não rivalizava com os deslumbrantes frescos e frisos do século XVIII, restituídos à sua beleza original por um cuidadoso trabalho de restauro. A minha anfitriã recebeu-me com um aperto de mão firme e um sorriso aberto. “Ora então como está o meu caro amigo?”, perguntou, numa formalidade cordial que, como vim a perceber, lhe era muito característica. Com um vestido azul-escuro de corte clássico, impecavelmente penteada, maquilhagem discreta no rosto, emanava uma elegância intemporal, sem artifícios desnecessários. 

Sentámo-nos frente a frente, à secretária. Virado para mim, chamou-me a atenção um retrato seu com o marido, Mário Soares. Ao lado da moldura, três livros: uma compilação (em italiano, se a memória não me falha) de textos do Papa João Paulo II; outra, em inglês, de escritos e discursos de Martin Luther King (“A Testament of Hope”); e “The Audacity of Hope”, de Barack Obama, que em Novembro daquele ano seria eleito presidente dos Estados Unidos. Para desbloquear a conversa, perguntei-lhe o que achara do livro de Obama e Maria Barroso confessou que, apesar da sua amizade e grande apreço por Hillary Clinton, se sentia mais galvanizada pelo carisma do então senador do Illinois, que considerava “um homem muito inteligente, com um enorme poder de oratória”.

Depois de trocarmos mais algumas impressões sobre assuntos da actualidade, e já a sentir-me mais confiante, introduzi a questão que ali me levara: o “álbum de memórias”. Uma vez mais, fui surpreendido. Maria Barroso deu imediatamente o seu beneplácito ao projecto, ficando assente que o trabalho teria de partir de uma série de conversas gravadas, que passámos a ter com regularidade. Paralelamente, a biografada encarregar-se-ia de revisitar o seu arquivo pessoal em busca de documentação relevante, enquanto eu procurava, nas conservatórias do Registo Civil e nos arquivos da PIDE, informações complementares e essenciais sobre a sua história familiar e passado de luta contra a ditadura. Mais do que disponível, Maria Barroso mostrou-se agradada com a perspectiva de revisitar a sua biografia. O que nenhum de nós antevia era que esse exercício nos consumisse tanto tempo e nos levasse a algumas descobertas inesperadas.

O princípio da história
Na preparação que ia fazendo para as entrevistas com Maria Barroso, delineei a sequência dos momentos mais marcantes da sua vida, começando, como é óbvio, pelo princípio: sétima de nove filhos (dois dos quais morreram ainda bebés) de Alfredo José Barroso (1887-1970), capitão do Exército, e de Maria da Encarnação Simões (1890-1970), professora primária, Maria de Jesus Simões Barroso nasceu a 2 de Maio de 1925, na Fuzeta, concelho de Olhão, onde a mãe leccionava. Mas rapidamente passei deste berço geográfico, demasiado evidente, para outro, mais a norte, que me pareceu o apropriado para o início da história que me propunha contar. Se as origens paternas de Maria Barroso estavam ali perto, nos Montes de Alvor, concelho de Portimão, as maternas remontavam a Coimbra. Além de a circunstância que, de certo modo, propiciou o encontro do casal Barroso ser narrativamente interessante.

Maria da Encarnação chegara ao Algarve ainda bebé, quando a mãe fugiu ao casamento infeliz com um polícia coimbrão, homem rude e violento, e se refugiou em casa de um casal de Lagoa, que a acolheu como governanta. Foi ainda o apoio desta família que permitiu a Maria da Encarnação obter, em Faro, um diploma para o magistério primário, sendo depois colocada nos Montes de Alvor, onde conheceu aquele que veio a ser seu marido. Quanto mais eu pensava na mulher analfabeta que, em 1890, afrontara corajosamente os rígidos padrões da época para se furtar, a si e à filha, a uma vida de infelicidade e violência, mais me parecia ser essa fuga da avó de Maria Barroso o arranque certo para a biografia.

Munido apenas do ano de nascimento e nome, mergulhei nos registos do Arquivo Distrital de Coimbra em busca de mais informações. O resultado da pesquisa ultrapassou as minhas expectativas e convenceu-me a antecipar em alguns anos o início da acção. Entre outros elementos, previsíveis, descobri que, por volta das nove da noite de 16 de Julho de 1865, uma bebé recém-nascida foi abandonada na roda dos enjeitados com um bilhete, presumivelmente deixado pela mãe, a pedir que a criança recebesse em baptismo o nome de Maria da Rainha Santa. A consulta dessa documentação permitiu-me estabelecer, com algum rigor, os acontecimentos-chave da vida da avó de Maria Barroso até à ida para o Algarve.

Ao partilhar com a minha biografada os dados que tinha apurado, e que ela desconhecia, testemunhei uma comoção intensa e genuína. Nas suas palavras, e nas lágrimas discretas que a vi verter, a saudade misturava-se com um profundo orgulho. “Nunca me disse nada, a minha querida avó… Depois de saber disso, ainda a admiro mais.” Foi, para mim, esclarecedor que uma informação que receei ser demasiado íntima ou sensível para tornar pública fosse, pelo contrário, entendida como fundadora da coragem de uma mulher que teve um papel estruturante na vida de Maria Barroso, não apenas do ponto de vista afectivo, mas até do ponto de vista espiritual. Afinal, foi Maria da Rainha Santa quem, ao arrepio do anticlericalismo republicano do genro, apresentou a neta aos preceitos da fé: “A minha avó, quando eu era pequena, levava-me muitas vezes à igreja e ensinou-me a rezar.” Adormecido pela colagem da Igreja Católica ao salazarismo, esse impulso místico regressaria muitos anos mais tarde, em 1989, no momento dramático em que quase perdeu o filho num acidente de aviação na Jamba, Angola.

A descoberta de uma vocação
Sempre que se falava da sua consciência política, Maria Barroso fazia questão de frisar que, mais do que desperta pelo casamento, ela fora construída e vivenciada desde pequena, em casa. Logo no início do seu percurso militar, Alfredo Barroso acompanhou com entusiasmo as movimentações que conduziram à revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, tornando-se acérrimo partidário de Afonso Costa e opositor de Sidónio Pais. Se no consulado deste último experimentou os primeiros reveses profissionais por motivos políticos, o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que deu início a 48 anos de ditadura, atingiu-o em cheio no aguerrido coração de democrata. E levou-o a assumir, para o resto da vida, o compromisso arriscado de lutar pelo regresso das liberdades.

Daí que a primeira fotografia conhecida de Maria Barroso tenha sido tirada na Cadeia Nacional, em Lisboa, ao lado da irmã mais velha, Fernanda, e do pai, que aí se encontrava preso por ter participado numa das primeiras e mais sangrentas tentativas para derrubar a ditadura, em Fevereiro de 1927. Libertado em Setembro do mesmo ano, Alfredo Barroso foi novamente detido em Julho de 1928, no rescaldo de outro fracasso revolucionário que lhe valeu 41 dias no Forte de S. Julião da Barra.

Em Outubro de 1933, já sob a vigência da Constituição que consagrou os princípios do Estado Novo, liderado com pulso de ferro por António de Oliveira Salazar, o pai de Maria Barroso envolveu-se em mais uma intentona. Castigo: 284 dias de deportação na fortaleza de S. João Baptista, em Angra do Heroísmo, Açores, onde, curiosamente, também estava preso o pai de um rapazito chamado Mário Soares. Com esse comprometimento político e uma prole numerosa para sustentar, os Barroso enfrentavam dificuldades económicas, agravadas pela instabilidade geográfica que a situação profissional de Alfredo e Maria da Encarnação acarretava: da Fuzeta, a família tinha-se mudado para Setúbal, depois para Palmela e de novo para Setúbal, até se fixar definitivamente na Praça das Flores, em Lisboa, no Verão de 1935. Em tempos difíceis ou menos tempestuosos, valeram-se sempre de uma união inquebrantável, baseada no respeito, na solidariedade e num empenho militante em minorar as injustiças sociais.

À consciência política desenvolvida desde a infância juntou Maria Barroso, ao tornar-se adolescente, a consciência de uma vocação para o teatro que começou a manifestar-se num talento secreto para ler e decorar poemas, depois ditos em voz alta. Estimulada por professoras do Liceu D. Felipa de Lencastre que nela reconheceram esse talento, continuou a nutri-lo. Quando um dos irmãos a viu recitar um poema na escola e, impressionado, fez eco da descoberta em casa, a jovem Maria de Jesus assumiu perante toda a família o desejo de se inscrever no Conservatório. Para desgosto da mãe, o pai apoiou-a, na condição de que ela completasse os estudos liceais em simultâneo. Maria Barroso acedeu e não só concluiu o liceu como se diplomou com 18 valores no Conservatório. Após uma experiência efémera no Teatro Ginásio, no Chiado, abriram-se-lhe as portas do Teatro Nacional, onde teve Palmira Bastos e, sobretudo, Amélia Rey Colaço como figuras tutelares. Estava-se em 1944. 

Nesse mesmo ano ingressou no curso de Ciências Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi aí que, ainda caloira, teve um encontro marcante, no dia em que não conseguiu fazer exame de Higiene Escolar: “O professor dessa cadeira marcou o exame exactamente para quando eu tinha, no teatro, um ensaio muito importante a que não pude faltar. Fiquei tão aborrecida por não ter podido fazer o exame que comecei a chorar no corredor da faculdade. Um colega que ia a passar – o João Falcato, um homem da oposição, muito dado e generoso, que tinha publicado um livro chamado ‘Fogo no Mar’ – viu-me naquele estado e perguntou-me: ‘Ó Maria Barroso, mas o que é que sucedeu?’ Estava eu a explicar-lhe o que tinha acontecido quando passou por ali outro colega nosso, que eu não conhecia.” Esse colega, que então lhe dirigiu algumas palavras de conforto, era Mário Soares.

Ascensão e queda
No Teatro Nacional, Maria Barroso rapidamente ascendeu à primeira linha da companhia liderada pelo casal Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Papéis de relevo em retumbantes sucessos de crítica e público como “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, “Benilde ou a Virgem Mãe”, de José Régio, e “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, granjearam-lhe o reconhecimento como uma das melhores actrizes dramáticas da sua geração. Ao mesmo tempo, projectava a voz incendiária em afamados recitais de poesia subversiva. Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Manuel da Fonseca ou Sidónio Muralha eram alguns dos autores dos versos de revolta com que a artista causticava a salazarenta ditadura em sessões electrizantes que inflamavam plateias. Um desses recitais, em Santarém, chegou ao conhecimento da PIDE, a polícia política do Estado Novo, levando a que a declamadora fosse demitida do Teatro Nacional. “Cortaram-lhe as pernas”, terá desabafado Amélia Rey Colaço, ao saber da proibição de recontratar a “Mariazinha”.

Amputada da sua arte, que ainda assim continuou a exercer em recitais esporádicos, Maria Barroso deu-se por inteiro a outra paixão: o colega de faculdade que conhecera, chorosa, no dia em que não pôde fazer o exame de Higiene Escolar. Militante do PCP e dirigente do MUD Juvenil, Mário Soares prestigiava-se nos meios oposicionistas – um prestígio só aumentado pelas primeiras prisões, suportadas com o seu misto habitual de audácia e bonomia. Desde os primeiros tempos de namoro, Maria Barroso revelou–se-lhe inabalável na cumplicidade de afectos e de causas comuns. Quando, por ter assumido um papel de relevo na campanha presidencial de Norton de Matos, Soares foi outra vez preso, a 15 de Fevereiro de 1949, o par de namorados encontrava-se num impasse decisivo. Desempregada e a viver em casa dos pais, a actriz-estudante ocultava uma recém--descoberta gravidez que precipitaria o enlace do jovem casal.

Chegado a este ponto da biografia, experimentei, pela primeira vez, dificuldades nas entrevistas. Não se tratava de esmiuçar gratuitamente um pormenor picante, mas senti necessidade de abordar o assunto da gravidez, até porque, como Soares já se pronunciara sobre ele em público e de forma bastante desabrida, não tinha cabimento ocultá-lo no “Álbum de Memórias de Maria Barroso”. Eu já convivera o suficiente com a minha biografada para me aperceber do pudor muito particular que ela reservava a certos temas, mostrando-se, no entanto, capaz de uma franqueza sem freio no tratamento de outros, porventura até mais reveladores do seu íntimo.

Fracassadas as abordagens mais subtis, que lhe permitiam, com elegante facilidade, tergiversar a conversa, esgrimi o meu argumento e fiz a pergunta sem rodeios. A resposta, eufemística e ao mesmo tempo inteiramente honesta, ilustra bem o seu modo de ser: “Eu era muito formal – aliás, fui sempre –, mas nisso fraquejei. Deixei-me convencer por ele [Mário Soares] e sucedeu assim [risos]… Como íamos ficar com uma ligação importante, que era o nascimento do nosso filho, até já tínhamos pensado num casamento secreto, para selar essa ligação profunda. Que selámos à mesma, quando o Mário estava preso no Aljube – o que, nessa altura, até nos deu a possibilidade de estarmos mais próximos, porque eu já podia visitá-lo.”

A descrição do casamento, a 22 de Fevereiro de 1949, saiu num registo bem mais directo: “Foi uma cerimónia muito simples, na Conservatória do Registo Civil na Rua Alexandre Herculano. Quem representou o meu marido, com uma procuração, foi o Rogério de Araújo, que trabalhava no colégio do meu sogro. Os padrinhos do meu marido foram a Bá Mendes e o marido – o Manuel Mendes, um homem formidável e um querido amigo nosso, que também estava preso no Aljube e, portanto, foi padrinho por procuração. Os meus padrinhos foram dois amigos e colegas de faculdade: a Ruth Arons e o marido, Joaquim Barradas de Carvalho. Além deles estavam os meus pais e irmãos – alguns, porque nem todos puderam ir. Amigos estiveram muito poucos, porque quase toda a gente tinha medo […] Depois da cerimónia, eu e a Bá saímos do Registo Civil para irmos ver os nossos maridos ao Aljube. Havia uma hora de visita a seguir ao almoço e ainda conseguimos sair a tempo de nos metermos num táxi para irmos vê-los. Levei as alianças e foi então, no Aljube, que eu e o meu marido as pusemos nos nossos dedos, onde permanecem há mais de 60 anos.” 

Um amor absoluto
O casamento durou, mais precisamente, 66 anos e resistiu a tudo: prisões, exílio e vicissitudes diversas. Fica para a história como um entendimento absoluto, mas aberto à crítica e à ironia fina, que condimentam as afinidades de toda a família – cheguei a ouvir de alguém próximo do casal um suposto comentário com que Soares, agnóstico a dar para o ateu, aludia ao reencontro da mulher com o catolicismo: “Casei com a Pasionaria e agora vivo com a Madre Teresa de Calcutá.” De resto, as diferenças cingiam-se a questões de somenos importância e só muito raramente incidiam sobre assuntos de ordem política.

Quando se deu a ruptura de Soares com o PCP, no início dos anos 50 – já depois do nascimento dos dois filhos, João (n. 1949) e Isabel (n. 1951) –, Maria Barroso, embora continuasse a ser encarada com simpatia junto das hostes comunistas, abjurou, ainda mais militantemente do que o marido, o ideário que abraçara na juventude, como simpatizante. Mas contou-me várias vezes, divertida: “Quando o meu marido já estava em Belém, dei uma entrevista à Maria João Avillez, para a televisão. […] Até o Mário Castrim [jornalista e crítico de televisão, 1920-2002], que era comunista ferrenho e costumava ser muito contundente, gostou imenso de me ouvir naquela entrevista. E escreveu uma crítica muito simpática que terminava assim: ‘A desgraça da Maria Barroso foi ter casado com o Mário Soares’ [gargalhadas].” 

Até à revolução que depôs a ditadura, a 25 de Abril de 1974, o casal passou pelos maiores testes de resistência. Soares sofreu sucessivas detenções, esteve deportado em S. Tomé e exilou-se em Paris. As muitas cartas que a mulher lhe escreveu ao longo desse período, e que o “Sol” também publicou, constituem um testemunho histórico e humano impressionante. Algumas revelavam coragem e resiliência – os próprios envelopes, como os endereçados ao “Ex.mo Snr. Dr. Mario Soares, Preso Político na Cadeia do Aljube”, chegavam a ser, em si mesmos, verdadeiras demonstrações de força anímica. Outras, escritas durante o exílio, davam conta de momentos de angústia, desespero e até carência afectiva e sexual.

Muitas vezes sozinha e com os dois filhos a cargo, Maria Barroso assumiu ainda, oficiosamente (por razões políticas, fora proibida pelo regime de exercer actividades pedagógicas ou directivas, mesmo tendo concluído a licenciatura em Histórico-Filosóficas), a gestão do Colégio Moderno, naquela época em grande sufoco financeiro. Além disso, administrava todo o restante património da família, que fez prosperar com sentido de sacrifício e decisões inteligentes, como a compra da casa de Nafarros ou, já em democracia, a do Vau. Daí advinha o à-vontade para responder, quando lhe perguntavam pela sua suposta riqueza: “Rica, rica, não sou. Tenho o suficiente para viver confortavelmente, com muita comodidade.”

Mas nem as muitas obrigações que consumiam o seu esforço lograram afastar Maria Barroso do combate político. Candidata a deputada pela oposição em 1969, viu-se outra vez sujeita a interrogatório pela PIDE, por causa de uma referência ao problema colonial. A 4 de Abril de 1973, foi a única mulher a discursar na sessão de abertura do III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro. E, a 19 do mesmo mês, esteve de novo sozinha entre homens, no acto fundador do PS, que decorreu na cidade alemã de Bad Münstereifel. O seu voto contra a oficialização do partido, ao arrepio do que Mário Soares defendia, será porventura um dos desencontros mais curiosos entre o casal – um desencontro de que Maria Barroso rapidamente veio a arrepender–se, ao constatar que o marido tinha razão.
 

Aspergida com cravos, chegou por fim a liberdade. A 28 de Abril de 1974, Mário Soares regressava do exílio para, enquanto líder do Partido Socialista, se tornar um dos protagonistas do novo regime democrático, desde logo como ministro dos Negócios Estrangeiros. Além de acompanhar o marido em funções oficiais, Maria Barroso acabaria por assumir, ela própria, uma maior proeminência política, sendo eleita deputada em 1976, 1980 e 1983. Três anos mais tarde, o seu capital popular e carisma seriam decisivos para a difícil eleição de Soares nas presidenciais de 1986.

Fazer mais
Desde a chegada a Belém, Maria Barroso imprimiu, com exímio sentido de Estado, a sua marca numa função socialmente reconhecida, mas não consagrada na lei. A proximidade com os cidadãos e as preocupações sociais e de ordem cultural fizeram dela, até hoje, a primeira-dama mais querida pelos portugueses: “Quando o meu marido esteve na Presidência da República – o que me dava um maior conhecimento dos problemas do País e das pessoas, embora não fossem dadas grandes facilidades à primeira-dama –, limitei-me a seguir uma linha de continuidade que vinha da minha juventude: preocupar-me com as questões da cultura, ir ao encontro dos pobres e dos que sofrem, ser contra as injustiças… Aprendi com os meus pais a ser solidária, a olhar para os outros e a ajudá-los. Portanto, a minha modesta intervenção naqueles anos ressoou com uma grande sinceridade. Foi essa sinceridade que ficou no coração das pessoas.”

Talvez por tudo isso tenha sido sondada, no final do segundo mandato de Soares, para avançar com uma candidatura própria à Presidência da República: “Isso não passou pela minha cabeça, mas passou pela cabeça da Rainha Sofia de Espanha. Foi ela que, pela primeira vez, me disse, jantando comigo no Porto de Santa Maria, em Cascais: ‘Tú deberías suceder a tu marido.’ Eu ri-me e respondi-lhe: ‘Mas… Majestade, Portugal não é uma monarquia…’ Teve muita graça… Por acaso, até fui abordada nesse sentido por alguns sectores da nossa sociedade – grupos de mulheres, da Igreja… Curiosamente, o [embaixador espanhol em Portugal] Raúl Morodo, que também estava no tal jantar, respondeu à Rainha Sofia: ‘Dever, devia. Mas e o Mário?’ [risos]

De facto, o meu marido não o disse expressamente, mas eu percebi que não simpatizava com a ideia. Os homens da minha geração têm uma visão machista da sociedade e o meu marido não fugiu à regra. Uma mulher, ainda por cima sua mulher, vir a ser Presidente da República era um bocado difícil de aceitar. É verdade que ele tem outra envergadura, mas eu gostava de ter feito mais.”

E fez. Ainda em 1994, com o objectivo de prevenir a violência e promover os direitos humanos, Maria Barroso reuniu um conjunto de personalidades e criou a Fundação Pro Dignitate – em cuja sede, como contei no início deste texto, me recebeu pela primeira vez. A juntar à presidência da fundação, que ocupava boa parte do seu tempo, atendia a um número impossível de solicitações que a obrigava a manter uma agenda insana. Mas essa vertigem, que a outros deixaria prostrados, ajudou-a a chegar aos 90 anos com uma energia avassaladora. Comia e descansava pouco e, mesmo no Verão, logo de manhã bem cedo caminhava nove quilómetros (ida e volta) entre a casa de férias, no Vau, e a ponta da praia da Rocha. Ao longo da caminhada, mergulhava duas ou três vezes de cabeça nas águas cálidas do mar algarvio. Assim começavam quase todos os dias durante o mês de Agosto – a melhor altura para falar com ela sem restrições de tempo.

Maria Barroso era uma óptima conversadora. Mas se as conversam fluíam, as entrevistas, às vezes, nem tanto. Sobretudo em relação a pessoas, com o gravador ligado, acontecia refugiar-se em impressões vagas ou em pausas longas que indicavam um pejo excessivo em dizer alguma coisa pouco simpática. Por mais que me esforçasse, não consegui, por exemplo, captar-lhe uma única frase sobre Aníbal Cavaco Silva. Diz quem a conheceu muito antes de mim que, em tempos, foi diferente, que a gravidade de Estado lhe reprimiu o riso, a irreverência, a propensão para a pequena partida bem encenada. Verdade não absoluta, como todas. Não poucas vezes lhe testemunhei sonoras gargalhadas, alguns ditos jocosos, um raro assomo de pequena farsa entre cúmplices. Ainda e sempre a representação. Maria Barroso não era deslumbrada, mas precisava dos aplausos, gostava que gostassem dela. Nisso, foi actriz até ao fim.

Se tivesse de recordá-la num traço geral desdobrável em outros, fá-lo-ia como alguém que, com uma naturalidade espantosa, harmonizava no próprio carácter facetas de sinal contrário. Era progressista mas conservadora, organizada mas anárquica, elegante mas simples, participativa mas discreta, observadora mas ingénua, firme mas doce. E sabia, como ninguém, ser formal sem ser fria, ser crítica sem ser maledicente, ser culta sem ser pedante. A sua maior fraqueza era, talvez, a dificuldade em dizer não. Por isso, corria. Faltava-lhe tempo para o tanto que queria fazer, para estar em dois, três, 30 lugares ao mesmo tempo. Custava-lhe desfeitear aqueles que pediam a sua atenção: na rua, para um cumprimento; na fundação, para um encontro; por todo o lado, para o lançamento de livro, a entrega de prémio, a conferência, a exposição, a entrevista, o depoimento e o que mais houvesse.

Percebe-se porque a procuravam tanto. Maria Barroso era a voz do poema, da denúncia, do sentimento. Uma leitura diferente para o título do célebre monólogo de Cocteau, “A Voz Humana”, por ela representado num regresso efémero ao teatro, nos anos 60. A personagem falava ao telefone com um interlocutor que o público nunca chegava a ver ou ouvir, podendo, portanto, acreditar ou não na sua existência. A intérprete, essa, acreditava que existia sempre alguém, algo, do outro lado da linha. E da vida.