José Gameiro: “A primeira paixão a sério foi num Verão, tinha eu uns 15 ou 16 anos”

José Gameiro: “A primeira paixão a sério foi num Verão, tinha eu uns 15 ou 16 anos”


Aviões, comboios eléctricos e viagens são as paixões do psiquiatra.


José Gameiro gosta de viver. Fez ontem 66 anos e hoje junta amigos e família num almoço em casa. Esta festa, que se repete todos os anos, é o melhor presente que lhe podem dar. Invertemos os papéis e desafiámos o psiquiatra a deitar-se no divã e a pôr a sua vida em imagens, a começar pelas primeiras. Fala da infância, da paixão pela psiquiatria e vai buscar memórias improváveis, como andar de carabina no Alentejo profundo e levar Jorge Sampaio para os comícios no seu avião.

Quais são as suas primeiras memórias?

A primeira coisa de que me lembro é de andar atrás da minha mãe em casa, no corredor. Teria dois ou três anos. Lembro-me do grande nevão de Lisboa, em 1954. Depois lembro-me de entrar no Liceu Francês, com cinco anos. Tenho a imagem da fila para a aula e, se alguém nos chateava, dava-se umas biqueiradas com as botas de carneira. Lembro-me bem dos professores e das “guerras” entre os portugueses e os franceses, que eram menos que nós.

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Guerras físicas?

Não, era soft.

Mas era um rufia ou mais para o beto?

Era mais rufia mas era bom aluno. Sendo bom aluno, ser rufia era mais fácil. Na altura não havia essa questão de andar à pancada, do bullying. No fundo éramos todos amigos. Ainda nesse tempo tenho as imagens da família, dos passeios de fim-de-semana. O meu pai era do Ribatejo e de vez em quando íamos lá à quinta dos meus avós. Lembro-me perfeitamente de andar a apanhar fruta e ir buscar ovos às galinhas.

O que faziam os pais?

A minha mãe era doméstica e cuidava de nós. O meu pai era regente agrícola.

Qual é a primeira imagem negativa?

A separação dos pais, tinha eu oito anos.

Nos anos 50, não seria muito normal…

No Liceu Francês provavelmente era o único. Depois, aos nove anos, fui para um colégio na Estrela que era o Lar da Criança onde sou colega do Eduardo Barroso, do Francisco George, do Marcelo Rebelo de Sousa. O Eduardo tinha os pais separados e isso uniu-nos muito. Éramos os únicos com os pais separados, o que na altura era uma coisa complicada, metia vergonha.

Os outros miúdos gozavam?

Não, a vergonha era interior. Há um episódio que já tenho contado: a minha mãe, preocupada, vai avisar a professora do Lar da Criança que eu tenho os pais separados. E a senhora não faz mais nada: no primeiro dia de aulas, quando me apresenta, diz “Este é o Zé Manuel, coitado, tem os pais separados”. E aí é que o Eduardo vem ter comigo a dizer “já somos dois.”

O que é marcante na adolescência?

As namoradas.

A primeira quem foi?

A primeira foi uma amiga de família. Mas a primeira paixão a sério foi num Verão, tinha eu uns 15 ou 16 anos. Acaba quando ela volta para o Alentejo. Depois tenho um namoro importante com uma menina do Porto. Conheço-a num cruzeiro ao Brasil, num barco chamado Príncipe Perfeito. Era uma viagem das mil e uma noites: dez dias no mar, paragem na Madeira e em Cabo Verde, dez dias no Brasil e dez dias para cá. Para lá tenho uma namorada, lá tenho outra e para cá apaixono-me por essa rapariga.

E dura?

Uns meses, com cartas diárias. E telefonemas, caríssimos. Tanto que a minha mãe põe um cadeado no disco no telefone e aí descubro o número das avarias, o 113. Carregando no botão de pousar o auscultador três vezes, falava-se com a operadora e pedia-se para ligar. A minha mãe quando descobriu chateou-se. Mas ainda me deixou ir ao Porto sozinho pelos anos dela. Fui de manhã e vim no comboio-correio: saía do Porto à meia-noite e chegava às 8h.

Vinha feliz?

Sim, foi uma aventura. Foi a primeira vez que viajei sozinho e a minha mãe foi muito criticada porque não era muito normal um rapaz de 16 anos fazê-lo. Se bem que sempre viajámos muito para fora e lembro-me de com 12 ou 13 anos, numa volta pela Europa em que o gozo para mim era ir ver comboios eléctricos nas lojas da Alemanha, a minha mãe deixar-me passear sozinho enquanto ela e a minha irmã iam ver lojas de roupa.

Iniciou-se como se iniciavam 90% dos jovens da altura?

Não, iniciei-me com uma namorada. Quando vou para a faculdade com 17 anos a prostituição para as pessoas de esquerda era vista como uma coisa ultrajante, havia a procura de amor físico mas entre namorados.

Nessa altura já era de esquerda?

Sim, é a evolução muito típica. Começo por ser católico e faço uma militância grande na Juventude Escolar Católica (JEC), com o padre Alberto Neto com quem tive uma relação muito forte. À quarta-feira havia os convívios que juntavam grupos de rapazes e raparigas de liceus diferentes, discutíamos um tema religioso ou espiritual e depois levávamos comida e dançávamos, isto na capela do Rato. Portanto está-se a ver por que motivo íamos lá. Foi lá que ouvi pela primeira vez os Beatles, tinha 14 ou 15 anos. Depois tenho uma crise de fé. Sou de esquerda mas nunca foi uma esquerda orgânica. Era essencialmente contra o regime. Aí com os meus 19 anos, a minha mãe, que nunca foi comunista, quer ir a Rússia e pede um visto. É chamada à PIDE, eles autorizam e vamos os três para a Rússia. Eu e a minha irmã éramos de esquerda, nunca do partido comunista, e trouxemos todos os papéis que conseguimos arranjar. O pânico da minha mãe com aquilo.

E mesmo depois de voltar continuou a acreditar no Partido Comunista?

Nunca acreditei no PC e o que vi lá contribuiu muito para continuar a não acreditar. Pessoas a ir presas à porta das lojas que vendiam produtos para estrangeiros. Pediam-nos rublos ou mesmo dólares para comprar coisas que não podiam comprar. Lembro-me de pedirem à minha irmã – que já era médica – para mandar estetoscópios, que lá não havia material decente. Aquilo afastou-me ainda mais.

Uma reacção comum de quem então visitava a Rússia, mesmo do PCP.

Sim, era uma coisa horrível. Lembro-me do hotel com aqueles corredores e uma senhora com ar de polícia sentada com uma arma a vigiar tudo.

Sempre teve essa capacidade de observação?

Sim, estou a ver a mulher que foi detida por falar connosco.

Foi-lhe útil na carreira que seguiu?

Sim, isso e a memória. Tenho uma boa memória. Durante muitos anos não fazia ficha de doente, assentava apenas a medicação. Ate há 10 anos não tinha fichas. E ainda hoje tenho dois ou três doentes de quem lembro tudo. Na Medicina somos muito treinados para a memória. Durante um ano empinávamos três volumes de anatomia eu sabia mesmo tudo, onde nasciam os nervos, tudo. Nesse Verão passei dois meses, 14 de horas por dia, a empinar aquela coisa.

Voltando à evolução. A crise de fé, quando acontece?

Aí, no princípio da faculdade, deixo de acreditar. Até hoje.

Porquê?

Há uma altura em que o pensamento racional se sobrepõe aos dogmas de fé. Não quer dizer que não mantenha uma certa espiritualidade e os valores, mas fé não tenho. Não tem nada a ver com críticas a Igreja e não tenho nada contra pessoas religiosas, é uma questão da minha fé.

Tem pena de não acreditar?

Tenho pena, mas não consigo. Mas vou à missa, não vou sempre, mas quer dizer aquilo é uma coisa que não me sabe mal. Em miúdo fui imenso à missa, a minha mãe até teve medo que fosse para padre.

E foi chateado quando chegou da Rússia?

Não, nem fomos revistados. Mas a minha mãe com receio pôs os livrinhos todos dentro do piano e nunca mais os vimos. A partir dessa altura sou muito activo na Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Ganhámos várias vezes ao PC os lugares de delegado de curso, com uma linha de mais democracia interna. Em 1969 há eleições e eu faço permanência na sede da CDE em Cascais porque estava de férias. É aí que conheço Jorge Sampaio, a quem fico ligado até hoje.

Tem mais memórias dessa altura?

O meu pai emancipou-me para ter carta e o meu primeiro carro foi um dois cavalos. Lembro-me de um dia estar a chover, não consigo controlar o carro a descer a Fontes Pereira de Melo e espalho-me no Marquês. O carro não se vira mas abre a mala e ficam papéis da CDE por todo o lado. Eram papéis legais mas foi um susto. Mas pronto, a minha actividade política era a este nível. Fui convidado para o PCP mas não aceitei.

Que sítios frequentava além da política?

Estudei sempre em conjunto e tive um grupo toda a faculdade, que incluía o Eduardo Barroso. Estudávamos dois a dois e depois reuníamo-nos ao final da noite para fazer as sabatinas. Jogava bridge e íamos ao cinema, às sessões no Monumental às seis e meia. Íamos ao Galeto, Ceuta e Namur. Gostávamos do Gambrinus para ir comer, mas não sempre porque era caro. E do Amazonas. A minha mãe era uma grande doceira. Como dormia pouco e tarde, normalmente era sempre em minha casa que estudávamos porque fazia bolinhos de chouriço à uma da manhã e os meus amigos adoravam.

Sente os cheiros dessas noites?

Sim, claro. Não tenho nada aquela ideia chata da adolescência. Com certeza que houve desgostos de amor mas o sentimento geral é que foi muito bom. Tínhamos um grupo de amigos unido e revejo isso hoje no meu filho, aquela coisa de andar sempre com os mesmos amigos. Eu desde os meus 10 ou 11 anos ia quase sempre a pé para o liceu para apanhar o Xico Abecassis, hoje meu colega radiologista, e que morava a meio caminho do Camões. Depois havia as amigas, mas os grupos não se misturavam muito.

Perdeu os pais há muito tempo?

A mãe em 2008, o meu pai mais cedo, com 69 anos.

Sente muito a falta deles?

Sim, mais da minha mãe que do meu pai. Eram muito diferentes. Se bem que falei muito mais de mim com o meu pai. A minha mãe era mais de estar presente e sabia proporcionar coisas aos filhos. Não sinto falta dela para contar as minhas coisas, mas sinto falta do estar com ela.

Em miúdo nunca deu chatice, nunca tomou nenhum ácido?

Não, mas uma vez já no serviço médico à periferia no início de carreira, na Vidigueira, houve umas noites em que fumei um charro lá com os outros médicos mas nunca mais, ficava com uma dor de cabeça. Nem álcool, não sou grande bebedor. Fumei mas deixei de fumar há 20 anos e agora fumo cigarrilhas.

Quando é que decide ser psiquiatra?

Não foi evidente. Primeiro quis ser engenheiro agrónomo como o meu pai. Depois, influenciado por uns amigos, quis ir para a Marinha. Decido ir para Medicina com 15 ou 16 anos influenciado por duas coisas: a minha irmã e um tio, irmão do meu pai. Hoje eu e a minha irmã somos os únicos irmãos psiquiatras no país. Mesmo assim a psiquiatria não surge logo.

Já estava no curso de Medicina?

Sim. Na altura havia uma espécie de assistentes, bons alunos que eram convidados para monitores, o que era bom porque tínhamos ordenado. Começo por ser convidado para monitor de bacteriologia por um homem que marcou muito, Cândido de Oliveira. Hesito um pouco ali até perceber que a minha vida não seria olhar para um microscópio, o que é engraçado porque mais tarde viria a casar com uma patologista. Depois há uma altura em que penso na cirurgia, influenciado por Câmara Pestana, mas rapidamente percebo que aquilo também não era para mim. No final do curso era claro que seria psiquiatra.

Mas o que o puxa para aí?

Falar com as pessoas. Em termos estritamente médicos a psiquiatria é uma especialidade muito pobre. Tradicionalmente os psiquiatras eram até os piores alunos do curso. Olhando para aquilo como especialidade médica clássica em que se vê os sintomas, a história clinica, faz-se o diagnóstico e receita-se, são dez minutos. Há quem faça isto assim mas para mim o que era aliciante era perceber e conhecer a pessoa.

Ficava ansioso nas primeiras consultas?

Ansioso de tremer não. A ansiedade que eu sentia não era tanto por achar que não sabia falar mas porque não sabia que as pessoas precisavam de tempo para melhorar, que é algo que hoje ainda tenho alguma dificuldade em aceitar. Tinha a ansiedade de as querer pôr logo boas. Mas tínhamos uma grande supervisão, o que era muito importante, por um lado para discutir os casos mas também para falar do que sentíamos. É muito importante essa gestão dos sentimentos na psiquiatria, temos de ter cuidado para não gostar de mais nem de menos, porque tem é preciso sentir empatia.

Alguma vez gostou de um doente?

Nunca me apaixonei, mas tive de regular distância. Há pessoas com quem é muito agradável conversar.

Mas é-lhe indiferente que uma mulher atraente entre de mini-saia?

É. Sei que no momento em que for apanhado a olhar para as pernas de uma mulher, e ela percebe, é complicado.

Mas foi alguma vez seduzido?

Fui mas em situações muito patológicas, sem problema nenhum. Nunca tive uma situação em que também sentisse. Sou um homem um bocadinho atípico, os meus amigos gozam comigo porque não olho para as mulheres na rua.

E se tinha um filho doente, isso reflectia-se na consulta?

Os filhos são um mundo à parte na nossa vida. Ter um filho doente ou com um qualquer problema claro que nos desconcentra. E nunca me posso desconcentrar com os doentes.

E quando não gosta de um doente, o que faz?

Sigo um conselho do João dos Santos, que foi um dos primeiros psicanalistas do país. Uma vez disse-nos em Santa Maria “quando não gostarem de alguém, falem da infância porque simpatizamos sempre com uma criança.”

Foi algo que ganhou com a psiquiatria, a capacidade de aceitar o outro?

Sim, ao longo da vida também. Mas acho que aceito melhor os outros na psiquiatria. Não posso ser completamente psiquiatra na vida real, às vezes irrito-me.

Conhece a vida não só dos doentes mas de quem os rodeia. Às vezes sabe coisas que não queria saber, por exemplo de familiares ou amigos?

De familiares e amigos é muito raro. O que é mais incómodo é a pessoa estar num ambiente social e ouvir falar de pessoas que conhecemos da consulta. Não posso dizer “calem-se” nem vou poder usar aquilo. Só podemos trabalhar com a informação que nos fornecem na clínica. Não podemos duvidar daquilo que o doente diz, mesmo que às vezes seja mentira.

Teve algum caso de suicídio?

Felizmente só tive um.

Foi o caso que mais lhe custou?

Foi. Há outros casos em que senti que podia ter feito melhor mas não houve esse desenlace. Não me senti responsável porque foi um suicídio impulsivo, nada o fazia prever, mas a pessoa culpa-se sempre.

Não se ganha medo da loucura?

Não. Quer dizer, eu não. Não tenho medo de ficar louco. Sei que com a idade pode acontecer ficar demente. Há um bocado o mito da psiquiatra maluco. Terá um fundo de verdade: tenho colegas passados da cabeça. Agora aquela história de ir para psiquiatria porque já se tem uma pancada, quer dizer, não acredito nisso. A maior parte dos psiquiatras são pessoas normais.

Começou há mais de 30 anos. O que mudou desde então?

Muito. Antes as pessoas não iam ao psiquiatra ou escondiam e hoje há uma aceitação muito maior, menos estigma. Não digo que seja igualzinho a outras especialidades mas está melhor.