A caixa de Pandora


O que sabemos é que a intransigência e a arrogância dos líderes europeus, que não conseguem ver além da sua sobrevivência política, abriram a caixa de Pandora com consequências imprevisíveis.


Todas as manhãs cedo, leio as “gordas” do jornal e bebo café no mesmo local, uma pastelaria plantada em rua com estatuto de avenida. Os funcionários são simpáticos, não acertam com o meu nome, vai mudando, agora sou o senhor Aristides, o que nunca desminto e até me agrada. 

Os clientes que se repartem entre os residentes com lugar cativo, os empregados a fazer horas, os passantes a caminho da serena mesquita e os turistas a olhar a Gulbenkian, mesmo ali ao lado, criam uma atmosfera de café de bairro. 

Há uns dias, reparei em alguém que não era habitual. Um pai jovem com um filho pequeno. Ao fixar-me neles, na postura e no rosto do homem que olhava distante, ausente em si, de imediato me lembrei da foto “Mãe migrante” da fotógrafa americana Dorothea Lange.

 Havia no homem sentado no café uma insustentável desesperança, no limite da tensão física, misto de uma dureza quotidiana, angústia silenciosa e tristeza.

Tentei observar melhor. O miúdo debatia-se com um bolo, o pai não comia. Esperava imóvel, seco, com o rosto fechado, em tons cinza, como o de uma foto a branco e preto sobre a dignidade. A foto da grande depressão americana a que o associava sem saber explicar porquê.

Inesperada e inexplicavelmente, o miúdo perguntou: “Pai, o que são os gregos?” O homem, sem o olhar, respondeu: “São um povo.” O miúdo perguntou de novo: “Porque é que estão à guerra?” “Não estão em guerra, estão a lutar”, respondeu o pai. “Porque têm de lutar?”, insistiu o miúdo. “Porque têm. Vá, vamos embora”, retorquiu o pai, e saíram.
Durante o curto diálogo nunca se olharam. Levantei-me para os ver, iam lado a lado, o homem era alto o que fazia o miúdo mais miúdo. De repente pararam e olharam-se, falavam algo que não podia ouvir, ele acariciou a cabeça do filho e seguiram de mãos dadas.

Escrevi ali mesmo, sobre o jornal, a conversa a que tinha assistido, não queria que a memória me traísse mais tarde. A atmosfera tinha mudado. 
O “porque têm” da resposta repunha as coisas de forma límpida, porque é uma questão moral, porque se trata da humana e sagrada opção de sermos livres, fazedores do nosso destino, enraizados nas terras embebidas por séculos de lágrimas, suor e sangue dos nossos pais. 
O poeta grego Hesíodo, que viveu no século VIII a.C., contava que Zeus, o pai dos deuses do Olimpo, para castigar Prometeu, que tinha oferecido o fogo aos mortais, criou Pandora, a primeira mulher. Antes de a enviar para a terra, porém, ofereceu-lhe uma caixa que recomendou que nunca abrisse. Mas Pandora não resistiu à curiosidade e abriu-a, libertando todos os males que até hoje afligem a humanidade para castigar os homens. 
Assustada, fechou a caixa o mais depressa que pôde, mas era tarde, e a única coisa que lá ficou era pequena e ocupava muito pouco espaço: a esperança. 
Hoje, o que sabemos é que a intransigência e a arrogância dos líderes europeus, que não conseguem ver além da sua sobrevivência política, abriram a caixa de Pandora com consequências imprevisíveis.
Não tenhamos ilusões, os mercados são insaciáveis. O possível colapso da Grécia irá trazer um drama catastrófico para o povo grego em primeiro lugar, mas todos os povos que ousarem fazer frente aos ditames das troikas estarão sujeitos ao mesmo castigo.
Assistimos a uma lição de história política em directo, à subversão da democracia em que a senhora Lagarde pretende decidir dos destinos da Europa e dar uma lição aos rebeldes gregos.
O que estamos a presenciar é a antítese da democracia. A UE e muitos dirigentes europeus desejam que acabe por cair o governo de esquerda de Alexis Tsipras, porque se torna muito incómodo que na Grécia exista um governo contrário às políticas que contribuíram para o aumento das desigualdades nos países avançados e que esteja decidido a controlar o poder da riqueza.
Esta é uma questão política de entendimento da soberania, do papel das nações e dos povos e de um conceito de legitimidade democrática. A globalização colocou novos desafios e o modelo social foi posto à prova.
O que se passa com a Grécia diz respeito a todos os povos europeus, tem que ver com a liberdade e a democracia, é uma questão cultural, de humanidade e de paz. 
Tem de mobilizar todos os homens e mulheres porque é uma luta entre a civilização e a barbárie do capital, sem rosto e sem alma.

Consultor de comunicação
Escreve à quinta-feira

A caixa de Pandora


O que sabemos é que a intransigência e a arrogância dos líderes europeus, que não conseguem ver além da sua sobrevivência política, abriram a caixa de Pandora com consequências imprevisíveis.


Todas as manhãs cedo, leio as “gordas” do jornal e bebo café no mesmo local, uma pastelaria plantada em rua com estatuto de avenida. Os funcionários são simpáticos, não acertam com o meu nome, vai mudando, agora sou o senhor Aristides, o que nunca desminto e até me agrada. 

Os clientes que se repartem entre os residentes com lugar cativo, os empregados a fazer horas, os passantes a caminho da serena mesquita e os turistas a olhar a Gulbenkian, mesmo ali ao lado, criam uma atmosfera de café de bairro. 

Há uns dias, reparei em alguém que não era habitual. Um pai jovem com um filho pequeno. Ao fixar-me neles, na postura e no rosto do homem que olhava distante, ausente em si, de imediato me lembrei da foto “Mãe migrante” da fotógrafa americana Dorothea Lange.

 Havia no homem sentado no café uma insustentável desesperança, no limite da tensão física, misto de uma dureza quotidiana, angústia silenciosa e tristeza.

Tentei observar melhor. O miúdo debatia-se com um bolo, o pai não comia. Esperava imóvel, seco, com o rosto fechado, em tons cinza, como o de uma foto a branco e preto sobre a dignidade. A foto da grande depressão americana a que o associava sem saber explicar porquê.

Inesperada e inexplicavelmente, o miúdo perguntou: “Pai, o que são os gregos?” O homem, sem o olhar, respondeu: “São um povo.” O miúdo perguntou de novo: “Porque é que estão à guerra?” “Não estão em guerra, estão a lutar”, respondeu o pai. “Porque têm de lutar?”, insistiu o miúdo. “Porque têm. Vá, vamos embora”, retorquiu o pai, e saíram.
Durante o curto diálogo nunca se olharam. Levantei-me para os ver, iam lado a lado, o homem era alto o que fazia o miúdo mais miúdo. De repente pararam e olharam-se, falavam algo que não podia ouvir, ele acariciou a cabeça do filho e seguiram de mãos dadas.

Escrevi ali mesmo, sobre o jornal, a conversa a que tinha assistido, não queria que a memória me traísse mais tarde. A atmosfera tinha mudado. 
O “porque têm” da resposta repunha as coisas de forma límpida, porque é uma questão moral, porque se trata da humana e sagrada opção de sermos livres, fazedores do nosso destino, enraizados nas terras embebidas por séculos de lágrimas, suor e sangue dos nossos pais. 
O poeta grego Hesíodo, que viveu no século VIII a.C., contava que Zeus, o pai dos deuses do Olimpo, para castigar Prometeu, que tinha oferecido o fogo aos mortais, criou Pandora, a primeira mulher. Antes de a enviar para a terra, porém, ofereceu-lhe uma caixa que recomendou que nunca abrisse. Mas Pandora não resistiu à curiosidade e abriu-a, libertando todos os males que até hoje afligem a humanidade para castigar os homens. 
Assustada, fechou a caixa o mais depressa que pôde, mas era tarde, e a única coisa que lá ficou era pequena e ocupava muito pouco espaço: a esperança. 
Hoje, o que sabemos é que a intransigência e a arrogância dos líderes europeus, que não conseguem ver além da sua sobrevivência política, abriram a caixa de Pandora com consequências imprevisíveis.
Não tenhamos ilusões, os mercados são insaciáveis. O possível colapso da Grécia irá trazer um drama catastrófico para o povo grego em primeiro lugar, mas todos os povos que ousarem fazer frente aos ditames das troikas estarão sujeitos ao mesmo castigo.
Assistimos a uma lição de história política em directo, à subversão da democracia em que a senhora Lagarde pretende decidir dos destinos da Europa e dar uma lição aos rebeldes gregos.
O que estamos a presenciar é a antítese da democracia. A UE e muitos dirigentes europeus desejam que acabe por cair o governo de esquerda de Alexis Tsipras, porque se torna muito incómodo que na Grécia exista um governo contrário às políticas que contribuíram para o aumento das desigualdades nos países avançados e que esteja decidido a controlar o poder da riqueza.
Esta é uma questão política de entendimento da soberania, do papel das nações e dos povos e de um conceito de legitimidade democrática. A globalização colocou novos desafios e o modelo social foi posto à prova.
O que se passa com a Grécia diz respeito a todos os povos europeus, tem que ver com a liberdade e a democracia, é uma questão cultural, de humanidade e de paz. 
Tem de mobilizar todos os homens e mulheres porque é uma luta entre a civilização e a barbárie do capital, sem rosto e sem alma.

Consultor de comunicação
Escreve à quinta-feira