Catarina Neves. “Acho que daqui a cem anos isto pode valer alguma coisa”

Catarina Neves. “Acho que daqui a cem anos isto pode valer alguma coisa”


Catarina Neves, jornalista, passou um ano nos bastidores da maior casa de teatro do país. O resultado é o documentário “O Palco Teatro Nacional Dona Maria II 2014”, que em breve vai poder ser visto em sala e em festivais.


Catarina Neves não pediu licença quando decidiu agarrar na câmara e seguir a última encenação de Joaquim Benite. O documentário “Não Basta Dizer Não” ganhou o Prémio do Público do DocLisboa em 2013. Desta vez a jornalista com carreira na TSF e na SIC invade os confins da sala de teatro com mais história no país. Os processos criativos, as dicas de quem sabe, o cose-descose das costureiras. Neste palco cabe tudo.

Já tinha feito um filme com Joaquim Benite, em 2013. Agora centra-se noutro palco. Sendo jornalista, sobretudo de televisão, o que lhe interessa no teatro?
Tenho ligações pessoais ao teatro há muitos anos. Criei uma companhia com uns amigos, uma coisa que se chamava Fragmento, e aí ficou mais ou menos claro que não queria levar a minha vida pela representação enquanto actriz.

Isso chegou a passar-lhe pela cabeça?
Confesso que sim, mas é algo que tenho muito resolvido hoje, sem qualquer inquietação pessoal. Tenho um grande carinho pelo teatro, fico verdadeiramente emocionada quando vejo teatro, da mesma forma que fico chateada quando vejo teatro e não gosto. Interessava-me continuar a trabalhar o teatro de uma forma mais teórica, então fui fazer o mestrado em Estudos de Teatro, na Faculdade de Letras. 

Há quanto tempo?
Há uns dez anos. No fundo, tudo isto acaba por fazer sentido, toda a minha história. Se nós, jornalistas, sobretudo em Portugal, somos bastante generalistas, também é certo que temos interesses próprios. E a área da cultura acaba por ser aquela de que mais gosto, apesar de não ser aquela em que trabalho.

Como se concilia tudo isso?
Há muito que percebi que a televisão não tem esse tempo. Estive um ano e meio a trabalhar nisto, não posso propor um projecto tão longo a um canal que tem de alimentar diariamente uma hora e meia de informação de manhã e à noite.

Sobrou tempo para si?
É uma questão de opção. Em vez de ir todas as sextas e sábados beber copos com amigos, ou ir ao cinema, ou ver outras peças, ou ler um livro, faço isto. A minha vida passa a ser só trabalho. Tirando os 45 minutos em que almoço e janto, não há mais momentos de descanso. Mas vivo bem com isso. Há que fazer a gestão, o que é prioritário na minha vida é aquilo que me alimenta. O teatro alimenta-me a alma mas não me põe comida no prato.

O que espera conseguir com este documentário?
Sou muito influenciada por essa coisa do legado. Ao fazeres isto podes, de alguma maneira, estar a contribuir para um estudo, um levantamento histórico do que era a actividade teatral em Portugal no ano de 2014.

Esse foi um dos pontos de partida?
Absolutamente. Na minha tese de mestrado abordei um crítico de cinema, o Jorge de Faria. Baseei-me em crónicas, em fotografias, acho que, eventualmente, daqui a cem anos isto pode valer alguma coisa, este tipo de recolha. O jornalismo também faz, mas faz de uma forma muito influenciada pelo tempo.

No meio disto teve de surgir o cinema. Ninguém faz um documentário se não souber filmar.
Não tenho a escola de cinema, gostava muito, mas não tenho tempo. Acontece que quando saio com repórteres de imagem não saio em atitude passiva. Aquilo que aprendo com eles é a minha faculdade. Estou sistematicamente a perguntar “o que estás a fazer?”, “como é que bateste os brancos?”, toda essa linguagem. São 15 anos disto, que já é alguma coisa.

Foi fácil?
Nada fácil. Neste momento adoro filmar, mas quando comecei foi profundamente assustador. Filmar exige uma tremenda concentração, capacidade de resposta rápida, domar tecnicamente a câmara. Comecei a filmar porque este tipo de trabalho implica muita disponibilidade de tempo, estou tantas horas com aquelas pessoas do teatro que passo a ser um deles – ou pelo menos, não sendo um deles, não os incomodo. Alguém com essa disponibilidade era impossível de encontrar.

Quando começou a pensar nesta ideia?
Há cerca de três anos. Surgiu quando a professora Maria João Brilhante era presidente do conselho de administração do teatro. Nessa fase começámos a delinear um projecto, o que acontece é que ela saiu do teatro logo de seguida. Depois o Carlos Vargas viu o filme do Joaquim Benite e gostou muito. Aí disse lá no teatro que gostaria muito de ver algo semelhante por ali. Lá foram à gaveta buscar o projecto e a coisa avançou.

O que a impressionou mais no quotidiano de uma estrutura destas?
Aquilo é uma máquina muito bem oleada, que funciona muito melhor do que se diz e pensa, porque se associa muito o Teatro Nacional a uma empresa pública e todos os seus vícios. Acho que trabalham muito bem, venha quem vier, aquilo continua.

No documentário começou pela habitual vénia, que ocorre no final de um espectáculo, e acabou com os votos de “merda”, que se dizem nos bastidores antes de se entrar em palco. Porquê esta opção?
Apetecia-me fazer um twist, é uma opção artística e estética. A ideia era começar com o fim, fazer a ronda e reiniciar. Além disso, tendo o filme oito produções lá dentro, não dava para fazer uma narrativa pouco linear – iria criar alguma confusão. Assim sendo, quis desafiar a estrutura da coisa. A isto junta-se o factor de continuidade. O teatro nunca pára.

Teve a sorte de escolher um ano em que o Teatro Nacional mudou de administração e de director artístico. Foi a cereja no topo do bolo, certo?
Sim, valoriza o próprio documentário, é um bom exemplo do momento que Portugal vive em termos de política cultural. O Teatro Nacional é, mais do que qualquer outra instituição, um espelho dessa política, sobretudo no que toca ao teatro. 

Parece-lhe que o público, vendo apenas o resultado final de um espectáculo, perde uma parte essencial, talvez a mais interessante, de todo o processo?
Uma prima minha, investigadora de células estaminais, disse após ter visto o filme: “Depois de ver isto acho que, enquanto público, pago pouco para ver teatro”. Isto envolve tantas pessoas, tantos meios, isso remete para essa ideia tão complexa que todos discutem: “Porque é que o Estado tem que financiar o teatro?” Se o estado não financiasse o teatro o público tinha que pagar 50€ por bilhete. No fundo, o Estado financia o teatro como financia a saúde. Respondendo à tua pergunta, não sei se o público perde, não sei até que ponto tu mostrares tudo não faria com que se perdesse alguma da magia do teatro.