Um ano de califado. Mais vitórias que derrotas jihadistas

Um ano de califado. Mais vitórias que derrotas jihadistas


Apareceram a matar em Junho de 2014 e ainda ninguém os conseguiu travar. Os curdos de Kobane, os únicos que pareciam ter derrotado o grupo no terreno, estão de novo à sua mercê.


Mais de 2 mil pessoas participavam ontem nas orações da manhã numa mesquita xiita da Cidade do Koweit quando uma bomba explodiu, fazendo dezenas de mortos. Se as orações de sexta já são importantes para os muçulmanos, mais o são quando se atravessa o Ramadão, que este ano começou a 18 de Junho e acabará a 17 de Julho. Dita a tradição que, durante esses 30 dias do nono mês do calendário islâmico, os muçulmanos jejuam desde que o Sol nasce até que se põe, altura em que se faz a festa em honra do profeta Maomé. Milhões de seguidores da fé islâmica cumprem com preceito essa tradição. Mas este ano, ao contrário do que aconteceu em anos anteriores, todos eles, ou pelo menos a parte que segue o ramo xiita do islão, estão sob ameaça.

Ainda antes de o Ramadão começar, na quinta-feira da semana passada, o autoproclamado Estado Islâmico tinha pedido a todos os que o apoiam que matassem infiéis durante este período. E assim foi feito ontem, na Cidade do Koweit, à semelhança do que tem acontecido em países como a Arábia Saudita, onde vários atentados contra a minoria xiita têm tido lugar, todos eles atribuídos ao grupo que, em Junho do ano passado, anunciou a instalação de um califado islâmico na região do Iraque e da Síria.

O pesadelo espalhado pelos jihadistas chegou de mansinho nos dois países destroçados por duas guerras distintas, ainda que tenha levado pouco a fazer-se sentir com estrondo. Na Síria vive-se uma guerra civil de proporções quase inimagináveis desde que, em Março de 2011, milhares de pessoas começaram a sair às ruas de Damasco, alumiadas pela chamada Primavera Árabe, pedindo o fim do regime Assad – neste momento de Bashar, filho do anterior presidente durante décadas, Hafez. O líder, criticado por quase todos, lidou com os manifestantes com mão de ferro e em poucas semanas estalou um conflito que deixou o território fértil a grupos como o Estado Islâmico (ISIS na sigla em inglês).

O caso do Iraque, porque mais tempo já passou para alguns “erros” serem assumidos, é mais conhecido pela maioria. Depois dos atentados do 11 de Setembro de 2001 contra as Torres Gémeas e o Pentágono, George W. Bush, com a ajuda de um Durão Barroso prestes a assumir a liderança da Comissão Europeia e de um Tony Blair ao leme do Reino Unido, convenceu o mundo de que Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa no seu país e que, por isso e a bem da protecção da democracia e da liberdade, era preciso invadir o Iraque. Isso aconteceu em 2003 e só em 2014 é que as últimas tropas dos aliados abandonaram o país. Essa invasão é uma pedra no sapato de Barack Obama desde que tomou posse em 2008 e a principal razão pela qual ainda não enviou soldados de combate para o terreno, a fim de destronar o grupo mais sádico e sanguinário da memória colectiva moderna.

Bandeira negra Os cenários na Síria e no Iraque ajudaram à sua instalação e, depois dela, à conquista de mais e mais território. Desde Junho de 2014, quando a bandeira negra foi hasteada em partes dos dois países, o ISIS já estendeu os seus tentáculos até à Líbia, também mergulhada no caos e em guerras sectárias, ao Iémen, à Arábia Saudita, com os recentes ataques a muçulmanos xiitas, até à Europa e aos Estados Unidos – a começar pelas execuções de jornalistas e funcionários de ONG ocidentais que o grupo filmou e divulgou por todo o mundo, para atrair jovens descontentes ao islão, numa versão que a maioria dos muçulmanos recusa, a jihad.

Foram esses vídeos que, em parte, potenciaram a coligação internacional que foi criada em Setembro de 2014 pelos Estados Unidos, que pela primeira vez inclui não só os aliados ocidentais como as dez nações árabes que estão a sofrer, ou temem vir a sofrer, às mãos do ISIS. O problema, dizem alguns, é que para já essa coligação se tem limitado a operar ao nível aéreo, bombardeando bastiões do grupo extremista no Iraque, o que lhe tem garantido algumas vitórias, mas sobretudo um impasse que o ISIS tem sabido aproveitar. Neste momento já controla cerca de 50% do território sírio e grandes faixas de território iraquiano e continua a atrair jovens de todo o mundo. Usa as mulheres como escravas e moedas de troca, tortura de gays aos próprios membros que são apanhados, por exemplo, a fumar, lança ataques indiscriminados à passagem por qualquer cidade e naquelas onde já se conseguiu instalar o reinado é de terror. Provam-no imagens captadas às escondidas por comunidades ocupadas pelo grupo, que no terreno teve apenas uma verdadeira grande derrota: Kobane. Só que até aí, no enclave sírio-curdo na fronteira com a Turquia, voltaram em força.

Depois de os peshmerga terem destronado os militantes e cantado vitória, rodeados de aplausos audíveis em todo o mundo, o ISIS usou homens disfarçados de refugiados para voltar a entrar no território na quinta-feira. Até ver tem mais vitórias que derrotas em 12 meses de terrorismo. O tempo urge, é preciso que alguma coisa mais seja feita, mas o consenso parece estar mais longínquo do que algum dia esteve.