Olhando para a sucessão de Cimeiras, reuniões do Eurogrupo, encontros e desencontros entre Troikas e gregos, que por estes dias fazem as alegrias dos jornalistas e dos batedores policiais com base em Bruxelas, pouco tempo sobrou para lembrar o segundo centenário da batalha de Waterloo, travada a 18 de Junho de 1815.
Waterloo marcou o fim do projecto europeu de Napoleão, assegurou uma paz global que durou até à I guerra mundial e concedeu a um lugarejo com nome sanitário uma razão de ser comercial e turística.
A comemoração do bicentenário da batalha de Waterloo fez despertar o pior da natureza humana pelas terras belgas. À semelhança do que acontecera no ano anterior, com a celebração do centenário do início da I guerra mundial, em que se assistiu a uma comercialização da memória, com a transformação das trincheiras da Flandres em supermercado ao ar livre, trufado de produtos “made in China”, com abundância dos que certamente não existiam em 1914, adornados com uma papoila impressa e vendidos a preços inflacionados às hordas de turistas, em particular ingleses e americanos, ávidos de memória histórica e de boa consciência.
Na celebração do bicentenário de Waterloo os belgas conseguiram ir ainda mais longe e deram largas a um comércio de memorabilia bélica que derrotou, ex-post, os exércitos e os arsenais de Napoleão e Wellington. Foram vendidas aos incautos turistas ingleses e alemães (os franceses, por chauvinismo, tendem a não aparecer…) balas de formatos vários, todas historicamente certificadas como autênticas e recentemente desenterradas do campo de batalha, em tal quantidade que rapidamente esgotaram e foi preciso passar à venda de pregos ferrugentos, sobras “autênticas” de armas mais complexas.
O ridículo foi de molde a merecer comentário na imprensa local que, dando conta do processo de fabrico destas antiguidades, não deixou de enaltecer “o espírito empreendedor dos artesãos locais”.
Quem desdenhe do choque de civilizações ou critique clichés e preconceitos deve recolher tais ideias ao caixote do lixo da história. Não pretendo invocar nenhuma superioridade moral a favor dos povos do sul da Europa no que à vigarice diz respeito. Limito-me a constatar, baseado na melhor historiografia, na zona meridional do continente europeu, uma tendência para a vigarice dentro de portas (ou seja o mercado interno circunscrito às fronteiras do país e com o co-nacional como vítima eleita) acompanhada por uma preferência pelo mercadejar espiritual.
Em abono desta minha convicção deixo o testemunho de Raposão, que outro melhor não há:
“Por intermédio do Lino, eu vendilhava relíquias. Bem depressa, porém recordado dos compêndios de Economia Política, reflecti, que os meus proventos engordariam se, eliminando o Lino, eu mesmo me dirigisse ousadamente ao consumidor pio. Escrevi então a fidalgas, servas do Senhor dos Passos da Graça, cartas com listas e preços de relíquias. Mandei propostas de ossos de mártires a igrejas de província. Paguei copinhos de aguardente a sacristães, para que eles segredassem a velhas com achaques -”Para cousas de santidade não há como o senhor Doutor Raposo que vem fresquinho de Jerusalém!…”
E bafejou-me a sorte. A minha especialidade foi a água do Jordão, em frascos de zinco, lacrados e carimbados com um coração em chamas; vendi desta água para baptizados, para comidas, para banhos; e durante um momento houve um outro Jordão, mais caudaloso e límpido que o da Palestina, correndo por Lisboa, com a sua nascente num quarto da Pomba de Ouro.”
Escreve à sexta-feira