Há um ano, Maria deu por si a comentar mulheres com o namorado. Christina Hendricks. Sofia Vergara. “Também gosto muito do marido da Sofia Vergara”, acrescenta. A certa altura questionou o companheiro: “Achas que eu sou bissexual?” Ele respondeu-lhe que sim, que o sabia desde as primeiras conversas e trocas de olhares. “Com 18 anos houve uma altura em que me apaixonei por uma rapariga e pensei, ‘que horror, não posso ser lésbica, já estive com rapazes’. Foi um grande drama para mim e não fiz nada. E de repente, naquela conversa com o meu namorado, encontrei-me. E ele na boa com isso.”
Maria é um nome fictício. Tem 25 anos, nasceu e cresceu numa ilha que pede para não revelarmos, por causa do estigma. Há oito anos veio estudar para Lisboa e, até aí, nunca tinha falado sobre orientação sexual com ninguém.
“Em adolescente era superlesbofóbica. Na minha cabeça, duas mulheres a beijarem-se era um nojo, repressão que hoje sei que é muito comum. Depois vieram as dúvidas, comecei a sentir-me mal comigo própria. Gosto muito da minha ilha, mas consegue ser destruidor. É um meio pequeno, preconceituoso, tudo tem de ser hetero”, conta. “Podes estar uma vida inteira a questionar-te, a achar que há algo de errado contigo e que estás toda partida, e um dia percebes que há outros sítios onde toda a gente já ouviu falar, onde não é tudo mau.”
Os pais aceitaram, mas são a “excepção”, diz. A mãe, que sempre tentou contrariar o machismo local, só se chateou quando lhe disse que tinha falado com pessoal da ILGA antes de falar com ela. De qualquer forma, Maria nunca esteve com uma rapariga. Namora há três anos, vive com o namorado há um, mas assume-se bissexual. A orientação sexual não significa promiscuidade ou relações abertas ou com vários parceiros, tudo mitos, desmonta. “O que eu costumo dizer é, não gostas só de gelado de baunilha, também gostas de chocolate. Mas um dia não te pode apetecer só comer aquele gelado de baunilha?”, diz.
Para quem, como ela, se assume bissexual, o sentimento é comum. Ainda há muita incompreensão, quando não sentem nada de muito excepcional: atracção por pessoas e não sexos e o desejo de encontrar alguém, ser felizes, ter família.
“somos Invisíveis” Maria faz parte do colectivo actiBistas, que luta pela visibilidade da comunidade bissexual. Participar neste tipo de movimentos, em associações como a ILGA ou Opus Gay ou na Marcha do Orgulho Gay, que há uma semana juntou centenas de pessoas LGBT em Lisboa, começa muitas vezes por ser a forma de partilhar vivências, de ir quebrando barreiras, até as próprias. “Mesmo por parte da comunidade homossexual, ainda existe algum estigma. Somos invisíveis para todos, somos indecisos, somos egoístas porque queremos toda a gente para nós. Ou então, o facto de sermos bissexuais significa necessariamente que vamos ter de trair.”
Sara tem 30 anos e há menos de um adoptou o nome neutro Shane. Desde a adolescência que se sente atraída pelos dois sexos e sempre foi uma “maria--rapaz”. Até que começou a perceber que, para ela, a própria identidade estanque de género feminino ou masculino não fazia sentido.
Começou a aprofundar e percebeu que não está sozinha. Tal como existe uma escala de heterossexual a homossexual, com um grande espectro pelo meio onde há lugar para a bissexualidade, também na identidade de género não há apenas as gavetas tradicionais. “Só há muito pouco tempo percebi que havia um nome para aquilo que sentia”, diz.
É genderqueer, ou não binária. Transsexual, ou seja, alguém que não se identifica com o sexo de nascença, mas que não se identifica igualmente com a divisão entre sexo feminino e masculino. “Uns dias sinto-me masculino e outros sinto-me feminina, mas não rejeito o meu corpo, não tenciono fazer a mudança.”
Mesmo com a mudança de nome, virtual, ou quando tem uma aparência mais masculina, como a barba que colocou para a marcha gay, Shane sente que o facto de ser bissexual é mais motivo de preconceito. “Nunca tive problemas com a transsexualidade, tenho colegas de trabalho que me chamam Shane em função da expressão de género com que estou naquele dia.”
Shane namora há dois meses com um rapaz, heterossexual, que também aceita os seus dois lados. Mas sente que nem homossexuais nem heterossexuais entendem muito bem o facto de alguém poder gostar de homens e mulheres. “Imagino-me a estar a vida toda com alguém, da mesma forma que um heterossexual também abdica de gostar de outras pessoas se quiser ficar só com uma.”
A moda Raquel tem 22 anos e percebeu que era bissexual aos 16. Até aí, só tinha namorado rapazes. “Hoje em dia percebo que havia alguns sinais. Quando era miúda tinha os posters com rapazes e raparigas, e as minhas amigas só tinham os rapazes.”
Foi numa festa que tudo mudou. “Uma rapariga que eu nem conhecia disse-me que achava que eu gostava de raparigas. Disse-lhe que não e fiquei a pensar naquilo. Mais tarde disse-me que tinha sentido uma vibe, nunca percebi bem o que aquilo queria dizer”, sorri.
Acabaria por envolver-se com essa rapariga e perceber que, de facto, gostava. “Comecei por pensar que, se calhar, não gostava de rapazes. Ao início é confuso, começamos a questionar tudo. Mas depois percebi que simplesmente gostava de rapazes e raparigas.” Quando assumiu a bissexualidade, perdeu uma grande amiga de infância. “Chegou a dizer-me que era uma doença, uma anormalidade. Tentei pôr isso de lado enquanto deu, mas o cúmulo foi dizer-me à minha frente ‘não’.” De resto, os comentários mais preconceituosos que tem ouvido também têm sido de lésbicas. Do género “se andaste com pilas, não interessa”, diz. Namora com um rapaz há um mês, depois de outra relação de três anos. A relação mais longa com uma rapariga foi de nove meses.
Raquel está farta de ouvir falar na moda da bissexualidade, sobretudo entre os jovens, mas está convicta de que não é uma fase. “Sei que existe muito essa ideia, que é uma coisa dos jovens. Antes de entrar para a faculdade houve uma altura em que as minhas amigas também davam beijinhos quando estavam com os copos, mas isto é quem sou. Quando o negam ou dizem que, se estou com um rapaz, já não sou, sinto que negam uma parte de mim. Ser bissexual faz parte da minha identidade. Como um heterossexual não deixa de o ser porque está com alguém, não deixa de ver outras pessoas.”
Tiago, de 25 anos, também conhece esse tipo de bocas e rejeita a demonização da moda. “Os jovens estão a crescer numa sociedade que lhes permite não porem uma etiqueta neles próprios, aos 12 anos, a dizerem sou homo ou sou bissexual. Mesmo quando dizem que uma Miley Cyrus se está a aproveitar de dizer que é bissexual como marketing, ao menos os milhões de fãs dela ficam sensibilizados.”
Sair do armário Tiago cresceu em Mafra, com um pai a quem chegou a ouvir dizer que os homossexuais deviam ir todos para uma ilha. As coisas em casa mudaram e os pais até lhe perguntam por uma amiga que uma vez foi lá passar um fim-de-semana com uma namorada. Desde os 12 anos que sentiu que reparava tanto nos rapazes como nas raparigas, mas até ir para a faculdade e ter com quem falar sempre o negou. Sonha com um mundo onde não exista qualquer discriminação, o revés de hoje se sentir melhor consigo próprio e que o faz muitas vezes pensar no que tem pela frente.
Namora com uma rapariga, mas a primeira relação mais séria foi com um rapaz, e quando se imagina no futuro é indiferente o sexo do parceiro. “Digo bissexual para simplificar. Sou pansexual. Desde que me identifique com a pessoa, é-me indiferente se é um homem, mulher ou trans, se tem pénis ou vagina.”
Para Tiago, pode ser mais fácil para um bissexual sair do armário. “As pessoas pensam que é uma confusão, mas passa, e há um tempo de habituação.” Assumir-se é sempre difícil, não só para o próprio mas para quem o rodeia, diz. Também concorda que a comunidade gay nem sempre reage bem, mesmo conhecendo na pele a discriminação. “Muitas pessoas acham que só estamos a aproveitarmo-nos também dessa moda e não temos a coragem de assumir. Uma pessoa lésbica que se diga bissexual pode até ser por medo, porque precisa do seu tempo, e não propriamente para se aproveitar.” E depois existe a pressão da sociedade, que pode acabar por passar para a relação. “Cheguei a ser perseguido por uma carrinha de trolhas por andar de mão dada com o meu namorado. É-me indiferente com quem vou ficar, mas sei que se tiver uma relação lida como homossexual vou ser vítima toda a vida de homofobia. A mim, isso nunca me fez ter medo de ter uma relação, mas chega a um ponto em que sentes mais peso na relação por causa disso mesmo. Pelos comentários que ouves na rua, pelo que lês na internet. A homofobia e a transfobia são das maiores causas de suicídio de jovens em todo o mundo.”
Amadurecer Desempregado e formado em Ciência Política, Tiago quer envolver-se no combate à discriminação e tem feito trabalhos multimédia. Além disso, colabora com o site feminista “O Clitóris da Razão”. Tem os sonhos de qualquer pessoa: encontrar trabalho que o realize, conhecer o mundo, viver feliz na sua relação. Sempre pensou que gostava de ter os seus filhos, ultimamente pensa que poderão ser biológicos ou adoptados. Que quando for a altura, quer ajudar a criar pessoas que deixem o mundo melhor. Imagina-se só com uma pessoa ou numa relação mais aberta, ou até com vários parceiros, poliamorosa.
António Guarita é de outra geração. Aos 53 anos, bissexual desde que se lembra, sabe o que é amadurecer. Cresceu entre Inglaterra e Portugal, com umas amigas da família que o ensinaram a fazer tricô sob o olhar reprovador de uma delas e lhe disseram que não era correcto ficar sozinho com raparigas. Então ficava com rapazes, aos beijinhos e apalpões. Sempre se sentiu homem, mas que o tratavam como “menino-menina” e que essa mistura de afectos pode ter tornado mais fácil assumir a sua bissexualidade. “Are you a boy or a girl”, lembra a pergunta que um dia uma vizinha lhe fez em Londres, teria os seus dez anos.
Teve namoradas e namorados mais que a dose, se fosse homem de acreditar em doses certas. Mas depois vieram as escolhas, as cedências, as prioridades. Há 16 anos, o professor de Linguística, tradutor da ONUSida e colaborador da Opus Gay, casou com uma actriz e tiveram dois filhos, hoje adolescentes. Ele foi sempre aberto: não tem outras, mas teria outros. Namorou cinco anos com um homem e pensou em pedir o divórcio para ficarem juntos. Ele disse que esperava, mas acabaram por terminar. António também hesitou: havia os “rebentos” e a mulher. Vai de três em três meses a Londres e sabe que o casamento é pouco ortodoxo, mas assim será enquanto se sentirem bem.
Contou à mãe. Mas nunca disse ao pai. “Nunca contei por respeito. Ele era latino, tinha outros valores, não concebia estes direitos à diferença”, diz, sem ressentimentos. “Não fico ressentido com ninguém porque entendo as coisas desta forma: os meus direitos terminam onde começam os direitos dos outros. Temos de viver em sociedade. Para quê chocar? Para quê dizer, olá, sou o António, sou gay ou sou bi. Não vejo necessidade disso.”
Foi mais inseguro, esteve numa relação abusiva, sofreu com os comentários. “Ninguém diz que é fácil, a homofobia existe, os olhares de soslaio, as piadinhas. Gays e hetero chamaram-lhe bicha, paneleiro. Disseram que andava com mulheres por fachada. À medida que o tempo passa, ganha-se resistência, ainda que muitas pessoas regressem ao armário pelo estigma até de não serem aceites em lares se um dia precisarem, lamenta. Mas, por agora, António não pensa nisso. Mantém-se jovem nas ruas roupas extravagantes e está com quem quer estar. “Desde que haja carinho e compreensão, para mim é amor. O amor, a casa, o país, são tudo sentimentos. A casa é onde o coração nos diz que é a nossa casa. O amor é igual. Se estou com uma pessoa que me trata bem e existe química, não faço distinção. É amor.”
O fim das gavetas Sobretudo, António gosta cada vez menos de gavetas, dos rótulos. “Não há normal nem anormal, sou quem sou.” José António, de 60 anos, também as rejeita. É psicoterapeuta e, além da sua experiência, vê na clínica muitas pessoas que vivem “vidas de fachada”, com a desculpa de que preferem estar com travestis do que com prostitutas porque se arranjam melhor ou para não se apaixonarem. Até que um dia, como já viu, lhes sai o tiro pela culatra.
José António está convicto de que todos somos bissexuais, ainda que uns optem por viver apenas a heterossexualidade e outros a homossexualidade. Não tem nada de errado, se não houver repressão de uma dimensão. No seu caso, sempre soube e nunca o reprimiu. Desde os recreios da escola, onde muitas vezes os colegas mais ofensivos eram os que o procuravam. Na sociedade “brutalmente repressora” dos anos 60, teve namoricos com raparigas, e com rapazes apenas experiências de masturbação colectiva, apalpões, ditos atrevidos que tornavam as amizades intensas.
“Calhou” apaixonar-se por uma mulher, com quem casou e constituiu família. Tem um filho com 26 e outro com 34 anos. “No dia em que a pedi em namoro disse-lhe que era bissexual e ela aceitou.” Viveram mais de 20 anos juntos, até os filhos crescerem e os interesses e o trabalho os levarem por caminhos diferentes.
José António viu-se solteiro com 50 anos. Não imaginou que voltasse a ter alguém. “Como disse uma vez o Herman, estava quase a apaixonar-me por mim.” Durante todo o casamento não teve nenhuma aventura, o que diz não ser o habitual: muitos acabam por fazer vidas paralelas com homens ou mulheres, por vezes insistindo que são heterossexuais, no caso dos homens, por exemplo, por serem os activos. Até que se apaixonou por um colega de trabalho. Em Novembro faz quatro anos que casaram. “Não dá para dizer que a relação é mais satisfatória, não é por ser com um homem ou uma mulher que é pior ou melhor, mas pela pessoa. Sou muito feliz hoje, como fui feliz no meu casamento”, diz. Nunca se assumiu perante os pais, por serem muito preconceituosos. Mas não guarda tristeza. “As pessoas preconceituosas, de um modo geral, são infelizes, fecham a sua própria cela.”
A felicidade Tiago sente que finalmente começa a haver mais do que duas pontas de um espectro, que se recuperam ideias como a de Kinsey, nos anos 40, de que a maioria das pessoas estaria num ponto intermédio, com uma disposição sexual. Mesmo sendo novo, acredita que os mais jovens terão ainda mais facilidade em sair do armário e não viver reprimidos.
Para Raquel, mesmo que as experiências bissexuais sejam uma fase, é irrelevante, desde que sejam felizes e livres. Acabou o curso de animadora de rádio e tem o sonho de arranjar o seu cantinho numa estação como a Vodafone FM. Não sabe se o futuro vai ser com um rapaz ou com uma rapariga. Por agora, que seja com o namorado. Shane também não sabe o que a aguarda. Sexualmente, sente-se tão satisfeita quando está com um homem como com uma mulher. Embora se sinta “novata” com as raparigas, mesmo com a vantagem de conhecer o corpo feminino.
Mas há algo que a deixa feliz. Nunca falou abertamente com os pais mas, mesmo sendo de meios pequenos, surpreendem-na. Noutro dia a mãe disse-lhe que tinha ido a um bar e não sabia se ela, feminista, acharia grande graça. “Tinha gin para homens e gin para raparigas. Gin genderizado”, conta Shane. Perguntou-lhe o que havia de beber e a mãe respondeu-lhe uma mistura dos dois. E esta semana combinou almoçar com o pai e ele disse-lhe , “vê lá se fazes a barba”. Ri. “O meu pai é conservador. Temos grandes discussões sobre feminismo. Se isto é sinal de aceitação, para mim chega-me. Se a minha família me aceitar e se isto for um sinal de aceitação, sou a pessoa mais feliz do mundo.”
Maria não sabe sequer se algum dia vai beijar uma rapariga, embora seja provável. Mas apesar da adolescência reprimida num meio pequeno, tem uma definição de amor em que acredita e isso não a torna diferente de qualquer jovem da sua idade. ”Para mim, o amor é estares na cama a dormir, cansada do trabalho, e no dia seguinte acordas e a pessoa com quem estás diz-te ‘ontem deste tantos punzinhos de noite, e estavas tão fofinha’.”
José António não tem dúvidas de que os jovens do futuro poderão ser mais felizes. “Os jovens sentem-se mais libertos e estão-se pura e simplesmente a cagar para os preconceitos da sociedade, tal e qual como se estão a cagar para as carreiras que os pais querem que eles escolham”, diz. Mas, acima de tudo, acredita que há mais a mudar. “Isto é apenas uma ínfima particularidade da espécie humana. Tinha uma analisanda minha que dizia, com toda a razão, que entre uma noite de sexo, uma boa leitura, um bom serão com amigos e um bom filme, preferia o convívio ou a leitura. O sexo foi reprimido até aos anos 60 e, de repente, passou a ser quase obrigatório. O sexo não é assim tão importante.”