As bancadas são às dezenas, num espaço aberto, no festival de Yulin. Há mulheres e homens a fazer as vezes de talhantes. Também há muito sangue e centenas e centenas de carcaças de cão em cima das bancadas – umas já desmanchadas, outras ainda por arranjar. A tradição, naquela cidade do sudeste da China, realiza-se há 20 anos, e este fim-de-semana não foi excepção. Os visitantes chegam para celebrar o solstício de Verão enquanto saboreiam um prato de carne de cão. Estima-se que tenham sido consumidos 10 mil animais este domingo.
A preparação começa alguns dias antes do festival. Ao centro da cidade chegam vagas de motociclistas com motas carregadas de grades e cães no interior, apertados ao limite. São o prato forte de um festival onde também se consomem alguns milhares de gatos. Se existem, as preocupações e cuidados com o bem-estar destes animais (pelo menos até ao seu consumo) são bastante bem disfarçadas.
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É uma tradição local – numa região que tem seis milhões de habitantes –, longe de ser prática generalizada no país. “As sociedades evoluíram e, na própria China, os chineses do norte – e alguns do sul, também – contestam estes hábitos, que não fazem parte do seu perfil”, explica ao i Rui Lourido, historiador e presidente do Observatório da China.
De facto, a realização do festival foi cada vez menos pacífica de edição para edição. Este ano correram várias petições, nos dias que antecederam o evento, para tentar travar a morte certa de milhares de animais (as organizações de defesa dos direitos dos animas chegaram a falar em 40 mil cães e 10 mil gatos mortos no ano passado, mas os números não chegaram a ser confirmados). Uma delas, promovida no site change.org, reuniu mais de um milhão de assinaturas. Mas não teve qualquer resultado prático.
Nas redes sociais, um vídeo de contestação ao festival mostra imagens de cães de rua a serem apanhados e empilhados em grades. De acordo com o documentário, alguns animais de estimação são roubados aos donos para servir de alimento aos visitantes do festival.
contestados dentro de portas Os habitantes locais já se tinham habituado a essa pressão do exterior e à fama que pende sobre eles, fruto de hábitos pouco convencionais no mundo ocidental. Mas as críticas alargaram-se com a revolução cultural em curso na China.
Os protestos frente ao edifício do governador e as manifestações contra a realização do festival têm-se multiplicado de ano para ano e o crescimento económico, que resultou numa expansão da classe média, explica essa mudança de mentalidades. Afastados das regiões onde nasceram, por razões profissionais, muitos chineses passaram a olhar para os cães como animais de estimação. Longe da família, os cães tornaram-se a sua companhia. A tolerância para com as práticas mais tradicionais foi diminuindo na mesma proporção e no mesmo ritmo.
Rui Lourido recorda o olhar de repulsa que viu há uns anos no rosto de um chinês do norte do país. Num encontro que organizou em Sagres, o historiador ouviu um dos convidados, do sul da China, contar como tinha saudades de sair para a caça do rato do campo, que depois comia. O compatriota teve dificuldade em assimilar o relato.
Mas o historiador considera que não se deve olhar para o que acontece no festival de Yulin sob a capa do “imperialismo cultural”. Estes animais são encarados como outros que integram a alimentação regular no mundo ocidental. “São animais criados para o consumo humano, como um coelho, uma vaca ou um porco, não são cães de rua”, refere o presidente do Observatório da China.
As palavras de um morador local, numa reportagem da “Vice”, dão conta disso mesmo. “Alguns cães são amigos das pessoas e outros são comida. Na Índia, as vacas são sagradas. Se comeres carne de vaca em Inglaterra, toda a Índia se vira contra ti… é a mesma lógica.”
De volta ao festival, os adeptos do consumo destas iguarias garantem que a carne de cão é sinónimo de saúde. As receitas não têm muito que saber: frita, grelhada ou estufada, a carne é depois temperada com algumas especiarias e um toque de gengibre. Paralelamente, a cidade de Yulin é aquela em que mais casos de raiva em humanos são registados, e as autoridades de saúde chinesas não têm dúvidas em estabelecer a ligação entre os dois factos.
No final do dia, importa fazer dinheiro. Num mercado improvisado, a alguns metros do local onde se realiza o festival, os donos dos cães estão preocupados em fazer negócio. Seja para consumo ou para transformar os cães em animais de estimação, o que importa é vender e conseguir mais alguns yuans.