No dia 25 de Abril de 1974 registaram momentos cruciais da Revolução, como as movimentações militares no Terreiro do Paço e no Quartel do Carmo. Repartiam o mesmo laboratório fotográfico na revista semanal “O Século Ilustrado” e trabalharam para o diário “O Século” nesses dias intensos, assinando as imagens porventura mais marcantes dadas a conhecer ao mundo.
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A relação tremeu quando Gageiro pediu para compararem negativos fotográficos dos dias da Revolução porque lhe faltavam alguns fotogramas e havia fotos assinadas por Cunha que ele achava que eram dele. Daí à suspeita formal, consumada pela entrada em tribunal de processos postos por ambas as partes, foi um passo triste.
Publicamos aqui uma reconstituição dos movimentos dos dois fotógrafos no Terreiro do Paço, na manhã em que Salgueiro Maia dominou os carros de combate e durante a qual foram obtidas as fotos da discórdia.
NA MANHÃ da revolução de 25 de Abril de 1974, os primeiros habitantes da margem Sul a desembarcarem de cacilheiro no Terreiro do Paço, para mais um dia de labuta na capital, deram com um enorme aparato militar. O capitão Salgueiro Maia orientava a disposição de carros de combate na praça dos ministérios e, acocorado por detrás de uma viatura, o repórter fotográfico Alfredo Cunha captava o momento em que um polícia batia a pala aos oficiais revoltosos.
Salgueiro Maia topou-o pelo canto do olho e dirigiu-se-lhe asperamente: “Oiça lá, que raio faz aí escondido? Se é contra o regime está no sítio certo, se é a favor o melhor é pisgar-se para o outro lado. Não anda é escondido, porque o que estamos a fazer é para as pessoas andarem à vontade!”.
Alfredo Cunha, que tinha 20 anos no 25 de Abril, haveria de contar: “Fiquei logo a perceber quem mandava ali. Eu não entendia patavina do que se estava a passar, até julgava que era um golpe de extrema-direita. Mas já não larguei o Salgueiro Maia. Para onde ele ia, eu ia… e fotografava.”
No meio da guerra de nervos no Terreiro do Paço, Salgueiro Maia foi abordado por um soldado que trazia consigo um homem de 39 anos com três máquinas fotográficas Canon ao pescoço. O homem apresentou-se: “Eduardo Gageiro!”. O capitão correspondeu: “Salgueiro Maia! Sei muito bem quem você é, faz as capas do Século Ilustrado”.
Gageiro fora acordado às seis da manhã, na sua casa de Sacavém, por um amigo que lhe gritava ao telefone: “É hoje, é hoje! Traz os rolos todos para Lisboa!” O fotógrafo mais conceituado da imprensa portuguesa desembocou no Terreiro do Paço vindo por Cabo Ruivo e foi interceptado pela tropa. Não desarmou e disse ao soldado, com desplante: “Faz favor, leve-me ao comandante que eu sou amigo dele”. E ele levou.
Gageiro é a única das três personagens centrais desta história que dormira nessa noite. A postura enérgica de Fernando Salgueiro Maia escondia uma noite em claro. Ao ouvir na rádio Zeca Afonso a cantar “Grândola Vila Morena” – a senha dos revoltosos –, acordara os alunos da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, convencendo-os a rumar Lisboa numa coluna militar com mais poder de fogo de vista que de fogo efectivo, pois esse quartel formava furriéis e oficiais milicianos e a maior parte das munições nem era propriamente verdadeira.
Os 240 homens sem experiência de guerra rumaram a Lisboa em viaturas blindadas e de transporte, desceram a Avenida da Liberdade respeitando os sinais vermelhos e desaguaram no Terreiro do Paço para derrubar o Governo.
Riders on the storm
Alfredo Cunha também não se deitara nessa noite. Já a madrugada ia alta e ainda ouvia música com o irmão no apartamento familiar da Amadora. Tinham comprado o último disco dos Doors e o tema “Riders on the Storm” passava vezes sem conta. Na sala contígua, a mãe fazia serão de costura ao som da rádio – e ouviu algo inusitado. Chamou o marido e os filhos e ficaram todos colados às palavras do locutor: havia movimento de tropas. Alfredo telefonou para o jornal “O Século”, em cuja revista semanal “Século Ilustrado” estagiava, e foi mandado avançar por Mário Zambujal, o então carismático chefe da redacção. Às cinco horas chegava à estação da Amadora.
Foi para a revolução no primeiro comboio da manhã.
A luz do dia 25 de Abril foi “muito bonita – intensa mas filtrada”, recorda Alfredo Cunha. “Estava um dia luminoso, mas não de sol directo”.
Ele aprendera a ler a luz em pequenino, ajudara o pai e o avô a fotografar casamentos e baptizados, era esse o negócio familiar em Celorico da Beira. “Aos domingos estava tramado, lá ia eu pela Beira Alta a carregar material, a ajudar com os flashes adicionais”. Aos 15 anos ofereceram-lhe uma Petri FT e ele focava as miúdas giras dos casamentos, captava instantes paralelos às cerimónias repetitivas ou, como ele gosta de dizer, “fazia fotografia alternativa”.
E foi com esses trabalhos debaixo do braço que um dia desceu a Rua de “O Século” e pediu para falar com Eduardo Gageiro, o fotógrafo-artista que adquirira uma auréola não mais vista na Imprensa desde o desaparecimento de Joshua Benoliel.
Gageiro apreciou as fotos do jovem Alfredo e recomendou-o de imediato ao director da revista semanal “O Século Ilustrado”, Francisco Mata.
A atitude do mestre condizia com as suas origens, com o seu próprio percurso: assume a gratidão por quem, quando ele era ainda um rapaz, lhe deu a mão no sonho da fotografia. “Em miúdo trabalhava na Fábrica de Louça de Sacavém, andava de secção em secção a distribuir papéis. Depois comecei a escrever à máquina, a preencher facturas, o que era um frete. Tinha sempre fotografias na gaveta que coloria à mão.”
Teve um contacto intenso com os operários, conheceu uma série de artistas, um escultor ensinou-lhe composição, comprava rolos fotográficos e utilizava máquinas de amigos – até ao dia em que o pai lhe ofereceu uma “Rolleicord”. Daí aos prémios fotográficos e à cunha para ser apresentado a alguém importante na Imprensa foi um passo. Tinha 20 anos quando entrou para o “Diário Ilustrado” e ficou a revelar as fotografias dos outros, aguardando impacientemente pela sua vez de sair em reportagem.
“Foi por ter tido essa experiência que sempre acarinhei os jovens. E ao Alfredo Cunha tratei-o melhor do que a um filho, tratei-o como um príncipe!”, afirma.
Poder de fogo
"A luz era cinzenta, de um cinzento não fechado. Não havia sol, o sol nunca apareceu nesse dia. E eu gosto das luzes suaves”, recorda Eduardo Gageiro. E lembra como deu “o corpo às balas” na Ribeira das Naus, captando a todo o instante uma revolução em movimento.
A primeira força a opor-se a Salgueiro Maia vinha de Cavalaria 7, a tropa de elite que o Governo tinha de prevenção para um previsível golpe militar. Dispunha de arsenal capaz de destruir num ápice o Terreiro do Paço e varrer as forças vindas de Santarém. Mas quem comandava as autometralhadoras que irromperam na Ribeira das Naus era um spinolista dos sete costados e respeitador das hierarquias. Fez a continência a Salgueiro Maia e juntou-se aos revoltosos. O capitão passava a deter um poder de fogo real.
E mais cavalaria viria. Primeiro o major Pato Anselmo, depois o tenente-coronel Ferrand de Almeida. Conheciam-se bem, ninguém ia andar para ali aos tiros sem mais nem menos.
Eduardo Gageiro estava em êxtase e Alfredo Cunha percebia cada vez menos o que se passava: temia o pior quando um novo grupo entrava na praça, mas depois eles começavam a conversar, batiam a pala uns aos outros e acabava-se a excitação. De sobressalto em sobressalto, limitavam-se a fotografar. Haveria de correr mundo a imagem de Pato Anselmo aparentemente perdido e confuso no meio do asfalto da Rua do Arsenal – e esse momento revela-se hoje como forte motivo de discórdia entre os dois repórteres (ver texto ao lado).
O pior estava para vir: um fogoso brigadeiro da velha guarda, Junqueira dos Reis, surgiu de pé num carro de combate M-47, em plena Rua do Arsenal, e ordenou aos berros a rendição de Salgueiro Maia.
Perante um oficial-general armado com cinco blindados, polícia militar e uma companhia de infantaria – e por demais irritado –, o capitão insurrecto reagiu com aparente serenidade, gestos lentos, passos bem medidos.
Ícones da revolução
Alfredo Cunha, encostado à estátua equestre de D. José, apontou a teleobjectiva e aguardou o momento propício. Salgueiro Maia – contaria um dia – pensou: “Se dispararmos, estamos perdidos. O melhor é dialogar. Não, se vou dialogar ainda me prendem. Perdido por cem, perdido por mil, meto mas é uma granada ao bolso e vou saber como as águas param. Se eles me prenderem, marchamos todos. E os que ficarem resistirão, nem que seja por solidariedade!”
A icónica fotografia de Salgueiro Maia. © Alfredo Cunha
Maia chegou a meio caminho e gritou ao brigadeiro: “Venha aqui conversar!” E o outro berrava: “Venha cá você!”. Perante o impasse, Junqueira dos Reis mandou disparar, mas tanto o oficial do M-47 como o cabo apontador desobedeceram à ordem. O brigadeiro, furioso, afastou-se pelo seu pé, praguejando, sozinho e derrotado.
Salgueiro Maia deu meia volta e começou a marchar, vitorioso e aparentemente sereno, na direcção do Terreiro do Paço. É nesse instante que Alfredo Cunha dispara a sua Nikon F.
O episódio culminou com as tropas do brigadeiro a correrem ao encontro de Salgueiro Maia, gritando: “Estamos com vocês, estamos com vocês!” E nesse instante Eduardo Gageiro captou uma das mais belas imagens da Revolução, em que se vê Salgueiro Maia a morder o lábio para conter a comoção. O capitão diria um dia, pouco antes de morrer: “Percebi nesse momento que o 25 de Abril estava ganho.”