Mais que o espaço publicitário, nos de-salmados dias que correm, um dos mais valiosos bens que os meios de comunicação têm para se fazer sustentar é o silêncio. O seu silêncio em relação a temas que causem embaraço àqueles que tenham dinheiro suficiente para manter a discrição das suas actividades. Um exemplo da actuação segundo o manual dos déspotas para governar o que deve ou não ser servido à atenção pública vem da Arábia Saudita.
O site WikiLeaks expôs uma primeira leva de documentos secretos da monarquia ultraconservadora – perto de 61 mil de meio milhão de ficheiros na posse de Julian Assange, o fundador do projecto que se dedica a expor as maquinações das autoridades mundiais em nome dos interesses nacionais.
Trata-se de comunicações internas do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), os mais informativos com as suas embaixadas à volta do globo, bem como relatórios “ultra-secretos” da agência dos serviços secretos e do Ministério do Interior sauditas. E após estes terem vindo a lume na passada sexta-feira, o impacto ficou abaixo do esperado, pois as revelações estão longe de causar o abalo gerado pela exposição dos documentos diplomáticos norte-americanos, em 2010, que davam conta do apelo do rei Abdullah ao seu aliado para que lançasse um ataque que “cortasse a cabeça da serpente”, ou seja, do seu antagonista regional iraniano, resolvendo de uma vez o problema do programa nuclear. Outra revelação que não caiu muito bem dava conta das festas regadas a álcool e drogas de alguns menores membros da família real, em Jeddah.
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Em parte, a desilusão prende-se com o facto de não haver ainda um documento que comprove o apoio saudita aos grupos radicais sunitas, entre eles o Estado Islâmico, que estão a provocar o caos na Síria, Iraque e outros pontos do Médio Oriente. Bruce Riedel, um ex-agente da CIA, disse ao “New York Times” que embora haja claros indícios desse apoio, este é coordenado pelos serviços secretos do reino, com o MNE a ficar “fora da jogada”. “Isso garante que os sauditas têm uma forma de negar essas actividades, mantendo a sua articulação com outras secretas para apoiar os rebeldes”, adiantou.
Um dos aspectos que terá desapontado aqueles que estavam ansiosos em relação às novas revelações é o facto de as actividades do maior exportador de petróleo do mundo estarem simplesmente em linha com o que se sabia já ser a política externa de tantos dos países ricos da região, como Qatar, Koweit, Emirados Árabes Unidos, no que são meros aprendizes face aos EUA. Ainda assim, os documentos contêm detalhes suficientes para lançar luz sobre a diplomacia de um país muito cioso dos seus segredos e da reputação que construiu como o tio rico, de “mãos largas” na hora de satisfazer não apenas a clientela como os líderes das nações vizinhas que se mostram leais.
“Estamos a aprender sobre a forma como o dinheiro do petróleo é usado para aumentar a influência da Arábia Saudita, que naturalmente é substancial – este que é um dos grandes aliados dos EUA e do Reino Unido, e que desde esta Primavera está a patrocinar uma guerra no Iémen”, disse à “RT” Kristinn Hrafnsson, jornalista de investigação islandês e porta-voz do WikiLeaks.
Entretanto, Riade reagiu afirmando que alguns documentos terão muito provavelmente sido falsificados, sem no entanto negar a sua autenticidade. “É interessante que tenham sugerido que possam ser documentos adulterados, mas que não mencionem um único exemplo disso. Por outro lado, é claro que a sua autenticidade já foi confirmada por jornalistas que têm vindo a trabalhar com base neles”, adiantou Hrafnsson.
Mas vamos então perceber como Riade tem comprado o silêncio de vários meios de comunicação bem para lá do mundo árabe. Num relatório publicado pelo WikiLeaks no fim-de-semana, a forma sistemática como o reino manipula a sua imagem no palco internacional passa não só por uma constante vigilância sobre tudo o que lhe diz respeito como “pela compra de lealdades entre Austrália e Canadá e tudo o que fica entre os dois”.
Segundo a organização, que tem estado debaixo do fogo de praticamente todos os grandes blocos de interesses mundiais, a estratégia saudita para dominar o que se diz a seu respeito a nível regional segue duas linhas de orientação: “a vara e a cenoura” – ou, como referem os documentos, a “neutralização” e a “contenção”. A decisão entre qual das duas lógicas será adoptada depende de uma avaliação do mercado e do órgão de comunicação em causa – um exemplo que, por mais que longínquo, não deixa de ser representativo de estratégias que nos começam a ser familiares. O que Riade fazia no caso de muitas publicações era comprar milhares de assinaturas que de um modo ou de outro acabavam por se tornar leais ao Estado, ficando elas reféns desse apoio.
Muitas vezes trata-se de somas irrisórias mas que, no contexto, se revelam decisivas para a sobrevivência desses órgãos. “Um documento enumerando as subscrições que era necessário renovar até ao dia 1 de Janeiro de 2010 detalha os contributos para duas dezenas de publicações em Damasco, Abu Dhabi, Beirute, Kuwait, Amã e Nouakchott. Os montantes variam de 500 dólares (446 euros) a 33 mil dólares (pouco menos de 30 mil euros)”, lê-se no relatório, que adianta que estes subornos são sensíveis às variações políticas nesses países. “Eles variam de pequenas quantias que se revelam vitais, como os dois mil dólares anuais para meios de comunicação de países em desenvolvimento” – valor pago à agência de notícias guineense, pedido pela própria como um abono de que necessitava “urgentemente para resolver os problemas que está a enfrentar” – “aos milhões de dólares, como acontece no caso do canal televisivo conservador libanês, MTV.”
Não podendo abafar as revelações do WikiLeaks a nível internacional, Riade não deixou de lembrar aos seus cidadãos que quem quer que distribua estes documentos será punido segundo a lei de cibercrimes, uma ameaça que significa que quem “ajudar os inimigos da pátria” arrisca passar 20 anos na prisão.
A Arábia Saudita, além da posição dominante que mantém na Organização dos Países Exportadores de Petróleo, aparece há décadas no topo da lista das nações denunciadas pelas principais organizações dos direitos humanos. Enquanto isso, o país soma e segue, tendo na semana passada levado a cabo a sua centésima execução pública este ano.