Acreditar


Sabia que, se me rebentasse a bexiga, isso não queria dizer que fosse ficar sentada na sanita a ler livros do Astérix e a urinar para sempre. Sabia que, se escondesse macacos do nariz nos interstícios do sofá, não iam crescer gorilas. Mas acreditava.


Nunca fui muito de acreditar, mas fui sempre de escolher acreditar. Geri cuidadosamente a minha imaginação de forma a criar mundos sem dar nas vistas do mundo. O Pai Natal? Não existe, obviamente. Mas na minha cabeça lá estava ele algures na Lapónia, tinha era mais que fazer do que atender os meus pedidos (e claro que não era aquele tipo do centro comercial).

O mesmo se aplicava a Deus, apesar da educação tendencialmente não religiosa: na minha cabeça, lá estava ele algures numa nuvem, tinha era mais que fazer do que atender os meus pedidos (e não estava certamente na igreja das poucas vezes que a minha avó me levou à missa).

Esta forma solitária e secreta de acreditar fazia-me crer que tinha uma relação privilegiada com estas e outras entidades, enquanto o resto das pessoas perdia tempo a discutir a sua existência. Ainda hoje, enquanto continuar a sentir que não sei nada, acredito em tudo. Tudo enquanto coisa que me escapa, não enquanto Deus ou Pai Natal especificamente.

Quando era miúda sabia que os Parodiantes de Lisboa não viviam no rádio da minha avó. Sabia que, se me rebentasse a bexiga, isso não queria dizer que fosse ficar sentada na sanita a ler livros do Astérix e a urinar para sempre. Sabia que, se escondesse macacos do nariz nos interstícios do sofá, não iam crescer gorilas. Mas acreditava. A convicção que tinha acerca dos limites da realidade permitia-me, ao mesmo tempo, confiar confortavelmente na mitologia que criava. E sentir-me, ainda por cima, iluminada.

Ontem fui ver “Inside Out”, o novo filme de animação da Pixar, em que os protagonistas são as emoções de uma miúda de 11 anos a digladiar-se com o crescimento. As personagens – alegria, medo, tristeza, raiva e repulsa – gerem as reacções da garota às coisas da vida e, consequentemente, a forma como a memória processa essas coisas, de uma relutante mudança de casa à música daquele anúncio que, por mais que os anos passem, nunca nos sairá da cabeça (“ana-násalperceemangalaranjamaçãgoiababananamaracujá”… calma, não é uma canção da Dina, foi só um reclame de que me lembrei agora). 

É um belíssimo filme. E eu sei que as minhas emoções não são bonequinhos em frente a um computador de bordo. Eu sei, eu sei. Heh.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado

Acreditar


Sabia que, se me rebentasse a bexiga, isso não queria dizer que fosse ficar sentada na sanita a ler livros do Astérix e a urinar para sempre. Sabia que, se escondesse macacos do nariz nos interstícios do sofá, não iam crescer gorilas. Mas acreditava.


Nunca fui muito de acreditar, mas fui sempre de escolher acreditar. Geri cuidadosamente a minha imaginação de forma a criar mundos sem dar nas vistas do mundo. O Pai Natal? Não existe, obviamente. Mas na minha cabeça lá estava ele algures na Lapónia, tinha era mais que fazer do que atender os meus pedidos (e claro que não era aquele tipo do centro comercial).

O mesmo se aplicava a Deus, apesar da educação tendencialmente não religiosa: na minha cabeça, lá estava ele algures numa nuvem, tinha era mais que fazer do que atender os meus pedidos (e não estava certamente na igreja das poucas vezes que a minha avó me levou à missa).

Esta forma solitária e secreta de acreditar fazia-me crer que tinha uma relação privilegiada com estas e outras entidades, enquanto o resto das pessoas perdia tempo a discutir a sua existência. Ainda hoje, enquanto continuar a sentir que não sei nada, acredito em tudo. Tudo enquanto coisa que me escapa, não enquanto Deus ou Pai Natal especificamente.

Quando era miúda sabia que os Parodiantes de Lisboa não viviam no rádio da minha avó. Sabia que, se me rebentasse a bexiga, isso não queria dizer que fosse ficar sentada na sanita a ler livros do Astérix e a urinar para sempre. Sabia que, se escondesse macacos do nariz nos interstícios do sofá, não iam crescer gorilas. Mas acreditava. A convicção que tinha acerca dos limites da realidade permitia-me, ao mesmo tempo, confiar confortavelmente na mitologia que criava. E sentir-me, ainda por cima, iluminada.

Ontem fui ver “Inside Out”, o novo filme de animação da Pixar, em que os protagonistas são as emoções de uma miúda de 11 anos a digladiar-se com o crescimento. As personagens – alegria, medo, tristeza, raiva e repulsa – gerem as reacções da garota às coisas da vida e, consequentemente, a forma como a memória processa essas coisas, de uma relutante mudança de casa à música daquele anúncio que, por mais que os anos passem, nunca nos sairá da cabeça (“ana-násalperceemangalaranjamaçãgoiababananamaracujá”… calma, não é uma canção da Dina, foi só um reclame de que me lembrei agora). 

É um belíssimo filme. E eu sei que as minhas emoções não são bonequinhos em frente a um computador de bordo. Eu sei, eu sei. Heh.

Guionista, apresentadora e porteira do futuro
Escreve à sexta e ao sábado