Repúblicas de estudantes. Aqui há muita cerveja e histórias do arco-da-velha

Repúblicas de estudantes. Aqui há muita cerveja e histórias do arco-da-velha


Já albergaram muitas gerações de universitários e continuam, mas hoje com mais dificuldades.


O convite veio directamente do presidente desta República. Não podíamos recusar um jantar na Desordem dos Engenheiros, uma instituição sexagenária, a primeira república de estudantes de Lisboa, onde Zeca Afonso terá passado muitos serões, nos tempos do Estado Novo. A casa é a mesma de há 61 anos.

Fomos recebidos e encaminhados para a cozinha, onde se preparava o jantar que juntou na mesa redonda da sala a maioria dos residentes. “Estamos sem empregada, foi-se embora e não sabemos porquê. Ainda estamos muito ressentidos”, desabafa Fábio, o presidente que nesse dia assumiu as funções de dona Dila, empregada de uma década.
Para assegurar uma melhor organização, foi criada uma “comissão de loiça” – convencionada nos estatutos e tudo –  para que a casa não faça jus ao nome. O objectivo é cada um vigiar os que deixam pratos ou talheres por lavar. Quem for apanhado pela “PIDE da loiça”, fica obrigado a lavá-la durante o resto do dia, explicam-nos em jeito de paródia. Garantem que o esquema funciona bem, apesar de ser difícil aplicar as sansões quando “os infractores não reconhecem o crime”, explica Fábio, apontando para o último “apanhado” pela comissão.

 À mesa, perguntamos pelas histórias mais incríveis da casa. “E que tal a da cabeça de diabo?”, sugerem-nos.  É uma peça que ornamenta a entrada da república, mas ninguém sabe explicar a sua origem. “Apareceu um dia, subitamente”. E continuam: “Uma vez, numa festa, a cabeça, que ainda é uma coisa grande, desapareceu. Fomos encontrá-la na chaminé do prédio vizinho”. Ficou por apurar como foi lá parar e quem arriscou a vida para levar a cabo tal operação.

  “Todos os anos festejamos o aniverário da república – o centenário, que é uma festa que chega a ter mais de 200 pessoas cá em casa”, descrevem-nos com entusiasmo, enquanto degustamos os bifinhos de perú com natas. Há música aos berros, comida e, claro, bebidas com fartura. E muitas vezes, a alegria acaba com a polícia a bater à porta. “São os vizinhos que fazem as queixas”, até porque precisamente no andar abaixo há um lar de idosos. “No ano passado, a polícia tocou, fui falar com eles à porta, depois vim para dentro pedir para que se fizesse menos barulho, e esqueci-me que os polícias continuavam do lado de fora”.

Querem mais uma história? “Há uns 20 anos, um dos rapazes que aqui dormia não gostava do barulho que o colega de quarto. Arrastava muito os pés”, explica-nos o presidente, que é o actual ocupante do quarto. “Irritado”, resolveu cortar o mal pela raíz e fazer desaparecer os chinelos, colando-os ao tecto. Só muito mais tarde é que o dono se apercebeu que os chinelos afinal sempre estiveram ali, exactamente por cima da sua cabeça.  Terminado o jantar, eis que surge a questão: – “E agora, quem é que lava isto tudo?”; – “O último apanhado pela comissão, claro”, dizem em uníssono, apontando o dedo para o “infractor”.

As origens  Começou por ser o Lar da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico  em 1954. Só há 25 anos foi reconhecida como república e pelo meio, depois dos tempos conturbados do regime salazarista, chegou ainda a ser a residência oficial da universidade, albergando apenas alunos do IST. Até hoje.

“Em 1989, quem cá vivia conhecia alguém de uma república em Coimbra – a “Bota a Baixo” – e verificou-se que estavam reunidas as condições para termos esse estatuto”, relata-nos Fábio, salientando que a grande vantagem de morar numa república, com catorze pessoas, é que “nunca se está sozinho”. “Funcionamos como uma família, apesar da renovação que a casa vai tendo todos os anos”, descreve.

 Antes da visita à Desordem, o i conheceu as outras duas repúblicas de Lisboa: A República do 69 e a do Santo Condestável. Criadas nas décadas de 40/50, começaram por ser lares com ligações religiosas, mas ao longo do tempo, foram perdendo esse vinculo, até alcançarem o estatuto de república.
 
Provocador e curioso, o nome coincide apenas com o número da porta do prédio. Habituados a ouvir piadas sobre o nome, quem lá vive garante que não há nenhuma história “marota” por trás. A República do Santo Condestável teve uma percurso idêntico: começou por ser um lar, com ligações religiosas, mas perderam-nas ao longo dos anos.

Comum às três repúblicas é a forma como se organizam: há um presidente, um secretário e um tesoureiro e, sempre que se justifique, há reuniões onde são debatidos problemas, orçamentos para o mês seguinte, entre outras questões que possam surgir no dia-a-dia. Quem chega às repúblicas, inicialmente é apelidado de “plebeu”. Passa depois a “repúblico”, numa “cerimónia de passagem”, que é uma espécie de baptismo envolto num mistério. “Não podemos contar como é, é segredo”, afirmam.

Fututo incerto Apesar da longa história destas casas, a sua sobrevivência poderá estar comprometida. Sem  apoios sociais, cortados há uns anos, e com a nova lei do arrendamento (que poderá levar os donos dos apartamentos a fazer actualizações de renda), o futuro é incerto. Além disso, “hoje em dia os jovens estão cada vez menos dispostos a partilhar um quarto e a querer viver em comunidade”, lamentam os estudantes da república do 69, que sentem alguma dificuldade em manter a casa cheia, durante todo o ano.